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quarta-feira, 18 de março de 2020

Da escritora Graziela Veiga - MEMÓRIAS DE UMA VIDA


MEMÓRIAS DE UMA VIDA

Talvez pela situação do momento, talvez por me sentir mais angustiada, talvez pela saudade do meu irmão que partiu há sensivelmente dois meses, talvez por ter visto e partilhado o lugar onde nasci, tal e qual ele era, hoje sinto-me nostálgica.
Embora viva em Angra há alguns anos, o meu coração está na freguesia das Doze Ribeiras. Apesar de todas as faltas, subdesenvolvimento, foi naquela freguesia que eu me senti mais feliz. Se calhar pela família que, naquela altura, estava junta, pelos vizinhos e amigos. E além do mais, pela força que a minha mãe transmitia, por exemplo num caso semelhante ao que estamos a viver.
À medida que os anos vão passando, eu estou a ficar lamechas, sinto saudades de uma série de coisas que já tive. Queria regredir no tempo, viver novamente quase tudo. Queria acordar cedo, com uma única preocupação, ir a casa da minha avó. Naquela altura, os meus serões eram passados lá, com a minha tia Maria, a Victória (empregada), a minha avó, a tia Etelvina e o meu tio e padrinho Nelson.
Embora nos faltasse muita coisa, nunca nos faltou amor, amizade e alegria, pelo facto de estarmos juntos. Actualmente, não há tempo para nada, nem para conversar com um amigo. Estamos sempre em contra-relógio. As pessoas são cronometradas vinte e quatro horas. Sei que há mais abundância de muita coisa, mas chego à conclusão que, não é essa abundância que nos faz felizes.
Tenho saudades de ver pedras, terra, árvores, jardins, quintais grandes, como era o nosso, onde nos divertíamos à brava. Lembro-me de me deitar por cima da erva azeda e ficar a olhar o céu. Beber água da cisterna, tão fresca. Brincar à sombra de tantas árvores, à volta das hortenses que a minha mãe plantou. A brisa mansa a bater-me no rosto. Tenho gravado aqueles aromas, a flores, a terra molhada. Sou capaz de identificar cada cheiro, ainda hoje. Até das próprias casas por onde eu circulava. Tenho saudades de comer fruta das árvores, dos cestos carregados com melancias que o meu pai trazia para casa, cobertos com fetos.
Tenho saudades dos momentos de conversa, convívio que os meus pais mantinham com os vizinhos, onde nós permanecíamos atentos, pois gostávamos de ouvir os mais velhos. Aprendíamos sempre algo.
Tenho saudades de lavar roupa na pia, quarar a roupa branca, depois meter na água flor de anil, a fim de que a roupa ficasse ainda mais branca.
Tenho saudades daqueles momentos em que ia à retrete de madeira que ficava na casinha de lavar roupa, onde ficava um bom tempo, a ler.
Tenho saudades das visitas a casa do meu avô à Serreta. Íamos e vínhamos a pé, sempre com a minha mãe. Naquela altura, o nosso objectivo era ver as pessoas, por isso, o menos importante era o estado do arranjo da casa. Embora o meu avô tivesse tudo limpo. Mas a sua preocupação era que tivéssemos alguma coisa para comer. Ainda me lembro do queijo de peso que o meu avô tinha, era tão gostoso. E quase sempre, acompanhado com massa sovada, pois naquela época, cozia-se em casa todas as semanas. Além da casa do meu avô, ainda íamos a casa do meu tio Manuel, onde nos recebia sempre com muito agrado e abundância de comida. Achava um mimo, quando o meu avô dizia - aí vem a pequena das Doze que, era a minha mãe.
Lembro-me de cada casa da freguesia onde nasci, de cada família que a habitava. Hoje, estão diferentes, muitas vazias, já nada têm a ver com as casas da minha infância.
Mas como o tempo não perdoa, regresso e vivo a realidade. E neste momento, a realidade é esta, o Covid-19. Confinada a quatro paredes, a imaginação tem de vaguear, ocupar-se, a fim de que o tempo passe mais depressa. Por momentos, esqueci a tragédia que estamos a viver. Já regressei a minha casa.

18-03-2020
Graziela Veiga


Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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