MEMÓRIAS DE UMA INFÂNCIA FELIZ
Hoje, fui às Doze Ribeiras, a nossa casa, e encontrei a felicidade de antes. Soube que a minha mãe estava para cozer pão, fazer alcatra de congro, assar chicharros, fazer as bolachas com cobertura de calda de açúcar, assar mogango, fazer caspiada de pé de torresmo, torrar milho e pevides.
Nós andávamos distraídos no quintal a brincar, pois não havia nada melhor do que brincar. Então começamos por brincar às escondidas. Era a nossa brincadeira favorita, só pelo prazer de nos escondermos dentro dos caixões que o meu pai tinha na casa de despejo, anexa à nossa. Esses caixões já estavam prontos para as pessoas irem buscar, se por acaso fosse do agrado do cliente. Eram forrados a preto por fora, e por dentro, branco. O meu pai colocava-os no chão, ao alto, sobre tábuas, e cobertos com lençóis brancos. Para nós que, estávamos habituados a ver fazê-los desde o tempo do meu avô, por vezes, sentados dentro deles, enquanto o meu avô ia pregando à volta, não era assustador. Porém para os nossos amigos, era bastante assustador. E assim, conseguíamos a proeza dos nossos amigos nunca nos encontrarem quando nos escondíamos dentro dos caixões. Eles desconfiavam onde nós estávamos, mas faltava-lhes a coragem de lá ir, pelo que, a pedido deles, decidíamos não nos escondermos lá.
A saga da brincadeira continuava. Depois passávamos a brincar às escolas. A escola funcionava no quarto de costura da minha mãe, na casa de despejo. Éramos professores à vez. E lá improvisávamos um quadro, uma tábua, daquelas com que o meu pai fazia os caixões, onde escrevíamos com giz ou um bocadinho de telha da cobertura das casas. Os moldes de costura da minha mãe serviam de mapas. E abono da verdade, foi assim que demos cabo da maior parte dos moldes de costura da minha mãe. Foram usados tanta vez e depois enrolados à pressa, a fim de partirmos para outras brincadeiras. A imaginação era fértil, e não podíamos parar. Logo iniciávamos outra brincadeira, as mães e as filhas. Era uma vida de luta! Havia que improvisar uma mercearia. Então, a moeda de troca, era as tampas das garrafas de pirolitos. Íamos à procura delas à mercearia do meu tio Nelson. Antes, nós preparávamo-las, achatando-as com martelos. As notas eram poucas e quase sempre feitas de folhas de hortenses. Por vezes, de papel recortado. Então escolhíamos o local, e acartávamos tudo o que era necessário para o bom funcionamento da mercearia. E assim continuava a brincadeira. Arranjávamo-nos a rigor, com sapatos de salto alto da minha mãe, e mantilhas na cabeça, e lá íamos à missa. A "igreja" ficava lá ao fundo dos serrados dos meus pais. Lembro-me de uma vez, querendo parecer mais velha, improvisei umas maminhas com novelos de retalhos do tear da minha mãe. Ia toda prezada, quando os novelos caíram aos pés e lá rolaram pelo serrado abaixo, sempre a desenrolar. (risos) Que trabalho eu tive para enrolar novamente o novelo, de forma que a minha mãe não notasse. Será inútil dizer que, ela dava sempre pelas "asneiras".
E assim, se passava a tarde. Quase sempre acabávamos com jogos de cartas, pedrinhas ou berlindes. Ou ainda, o jogo da macaca.
A hora já ia adiantada e o cheirinho a pão quente e as demais iguarias, convidavam-nos a pararmos e a entrarmos para as degustarmos. Lavávamos as mãos e lá nos sentávamos à mesa, nos lugares que nos eram indicados, quase sempre os mesmos. O meu pai tinha o seu lugar reservado. Já sabíamos que, naquele lugar, ninguém se sentava. Ainda tenho presente o cheiro daquele ambiente. É inefável explicar. Penso que, passados tantos anos, ainda hoje, seria capaz de o identificar.
Já era noite. Acabávamos de jantar, naquela altura, cear. Rezávamos o terço, meditado pelo meu pai. E no fim, beijávamos a mão ao pai e à mãe, proferindo - Pai a sua benção, mãe a sua benção. Tomávamos banho, o mais estritamente necessário e íamos para a cama, sonhar com o dia seguinte, onde quase tudo se repetiria. Talvez mudássemos algumas brincadeiras, a fim de não se tornarem enfadonhas, pois a criatividade era muita e sem limites para sonhar, porque os sonhos das crianças são puros.
03-04-2020
Graziela Veiga
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