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quarta-feira, 20 de maio de 2020

De António Bulcão - SOS


SOS

Mal avistou a costa, o cagarro pressentiu que algo de estranho se passava.
Uma guarda imperial de gaivotas espalhava-se por cima do calhau, com os peitos brancos inchados e os bicos amarelos abertos, em sinal de ameaça.
- O menino de onde vem? - perguntou-lhe a mais graduada, que se via logo sê-lo pelas penas grisalhas.
- Do Brasil. Mas proquié? - irritou-se uma pisca o cagarro.
Havia anos que vinha para o Porto Martins e nunca os ares lhe tinham sido barrados, muito menos com aquela prepotência de quererem saber de onde vinha. O hemisfério sul é grande, toda a gente sabe que muitos países ficam nessa zona do globo, que interessava agora às gaivotas qual o sítio concreto de onde partira?
- Domine lá a insolência e ponha-se manso, antes que leve a sua bicada - enrouqueceu o pio a gaivota - Este ano as coisas estão muito diferentes por aqui. O cagarrito nunca ouviu falar da Covid19?
- Sei lá o que seja tal coisa, ando há meses no mar, já me faltam as forças nas asas, estou danado para me amassar no meu buraco e enriçar-me com a minha cagarra. Não temos tempo a perder, tenho de assegurar descendência para, em outubro, cavarmos daqui pra fora outra vez... Mas qual é o problema?
- O problema é que o menino vai ter de ficar em quarentena catorze dias!
- Quarentena? Mas o que vem a ser isso?
- Eu explico: há uma doença terrível que apanhou o mundo inteiro. Começou na China e foi para todo o lado, apesar de a senhora directora da saúde portuguesa ter afiançado que aqui o bicharoco não punha os pés. A verdade é que pôs mesmo os pés em quase todas as ilhas e quem vem de fora tem de ficar isolado 14 dias antes de poder andar por aí...
- Mas há muitos cagarros doentes?
- Não sabemos. Aquilo ataca sobretudo pessoas. Mas não queremos correr riscos...
- E isso da quarentena como é que funciona? Tenho de ficar num buraco da rocha catorze dias, sem poder pescar, nem andar de noite nos meus berros típicos, que até pareço um bebé com fome que os turistas adoram?
- Nada disso. Marchas é para o Hotel do Caracol e ficas lá o tempo que te disse. E não te preocupes com os turistas porque eles desapareceram.
- Há um Caracol que tem um hotel? Isto está mesmo muito avançado...
- Vá, vá, toca a voar até à Silveira, que lá duas companheiras nossas vão escoltar-te até ao hotel...
O cagarro acabou por obedecer, muito descontravontade. Mas, já instalado no seu quarto com vista para a piscina, começou a raciocinar. Aquilo era como estar preso. Tá bem que esperava que a comida no hotel fosse melhor que na cadeia, mas faltava-lhe o seu bem mais precioso - a Liberdade.
Telefonou a um advogado amigo, um canário da terra especialista em Direito da Família. Este não estava de acordo com ele. Estávamos a viver uma situação anómala e perigosa. Já tinhamos estado em estado de emergência mas ainda sobrava a calamidade. Não estava em causa a liberdade coisa nenhuma. Ele era livre para ter ficado no Brasil ou, então, cá chegado, dar meia volta e regressar ao país do samba. Não contasse com ele, para contestar judicialmente a quarentena obrigatória.
Só que todos sabemos o quão teimosos podem ser os cagarros. Telefonou a outro advogado, no caso um pato bravo que tinha acumulado sucessos em Direito Criminal. O que ele lhe disse foi música para os seus ouvidos.
Que sim, estava plenamente de acordo em que a quarentena equivalia a uma detenção ilegal e inconstitucional. Que já tinha grasnado a sua tese até na televisão, mas que só estava à espera de um animal com coragem suficiente para meter a sua pretensão debaixo dos olhos de um juiz. Tinha chegado o seu momento. Habemos corpus, gritou do outro lado da linha.
Pedido formulado, pedido entrado. E não é que a decisão do juiz foi conforme os interesses do cagarro e do seu representante legal?
Devolvido à liberdade o pioneiro, toda a passarada que estava nas mesmas condições começou a abandonar os hotéis, porque o governo decidiu, apesar de não estar de acordo, que a decisão judicial deveria valer para todos.
Estou fechado em casa, voluntariamente, desde 14 de março. O coronavírus já me roubou 65 dias de vida plena. Mas sou um privilegiado. Vivo numa casa em cima do mar e tenho bastante espaço exterior para me mover. Em nenhum desses 65 dias me senti preso, preservando a minha saúde e a dos outros.
À noite gosto de ir até ao alpendre. Fico ali no escuro, a ouvir os cagarros. Se acendo a luz, começam a ficar inquietos, os seus voos cada vez mais próximos e a última coisa que quero é levar com um cagarro nas ventas. Claro que não sei se o herói desta história está entre os que nidificam para os meus lados. Como rezo para que não estivesse infectado. Mas não quero correr riscos. Agora que começava a ficar descansado, depois de tantos dias sem casos positivos, temo novamente por um desconfinamento demasiado rápido.
Porque se o diabo do vírus me apanha, não haverá pato bravo que me salve...
António Bulcão
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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