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segunda-feira, 20 de julho de 2020

Da Califórnia de Luciano Cardoso - VALENTE VELUDO


VALENTE VELUDO

“Ó Filomena traz-nos cá dois copos lavados, se fazes favor, para matarmos o bichinho aqui ao nosso amigo ‘amaricano’ e brindarmos à saúde dos nossos netinhos, lá na sua rica América. Pode ser pobrezinha a nossa terra, mas pinga melhor do que esta tenho a certeza absoluta que o sr. Cardoso não vai achar lá.” Sempre achei uma piada enorme ao castiço falar do Fernando, quando nos sentávamos ali, debaixo da sua soberba latada enfeitada com cachos d’uva madura a desafiarem-nos o apetite dum salutar bate-papo. Tinha a língua afiada e a mente arguta para um homem já fisicamente fragilizado na casa dos oitenta. Era uma visita obrigatória que tinha de lhe fazer sempre que voltava de férias para rever meus pais lá na Ilha. A latada cobria aquele aprazível espaço à saída da porta da cozinha para a porta da adega bastante generosa no bom vinho de cheiro que a Filomena nos servia, diretamente da torneira do barril, antes da saúde lhe falhar levando-a desta para melhor, já lá vão uns bons dois anos. “Foi-se no ano das esmolas. Nosso Senhor quis fazer a esmola de a levar para lá porque estava a penar muito por cá.”
Embora mais idoso do que a esposa, o Fernando ficou atrás por ser o mais resistente duma valente geração de Veludos que acaba de se apagar. Conheci-os todos desde miudinho rapazinho educado ainda numa era em que nos ficava bem passarmos pelos nossos idosos familiares levando a mão à boca com um afetuoso “tio, a sua bênção”, para receber o mimo dum “Deus te abençoe e faça um santinho.” Foi um dos tais mansos costumes que se foi perdendo na trituradora roda do tempo e que muito contribuía para adubar aquele sacro respeito à moda antiga, cada vez mais afastado das relações humanas de agora. Trata-se, para mim, do mais bicudo problema a assolar a conturbada era em que vivemos – ver-se o velho respeitinho de outrora a arrastar-se pelas ruas da amargura.
Fernando Veludo, como a esmagadora maioria dos humanos, não foi nenhum santo. Miúdo traquinas, talvez pela ausência da mão firme dum pai à sua volta, cresceu reguila em rapaz depois homenzinho feito daquela teimosa fibra dantes quebrar que torcer. Por não temer a sua sombra, não tinha papas na língua e ai de quem se atrevesse fazer-lhe chegar a mostarda ao nariz. Ouvia pela medida da casca grossa, porque ele não era sujeito de pôr água a pintos. Quem o conhecia de ginjeira, dava-lhe o desconto por saber do seu duro percurso de vida. Não teve uma infância fácil, começando a trabalhar ainda moço na reles faxina dos serviços florestais, a cavar terra e acartar pedra para ganhar uns vinténs a fim de ajudar a mãe sozinha a tomar conta dele. Muito penou a Tia Rosa Veluda ao ver o seu tenro menino cedo a ganhar calo como um homem maduro, sempre esganado para trabalhar de maneira que nunca ficasse a dever nada a ninguém.
“Nunca precisei de emigrar, o meu amigo sabe bem.” Sei que ouvi este seu desabafo por mais do que uma vez ali, debaixo da sua bela latada. “Muita gente embarca por aí fora, às cegas, em cata de dinheiro fácil e trabalham na estranja como escravos fazendo serviços que aqui nunca fariam com vergonha, mas se também quisessem labutar duro cá podiam encarreirar a sua vida da mesma maneira. São cismas.” Sempre foi um tipo cismado, ou prezado, em vingar à custa do seu suor, o Fernando. Vinha de família aquele seu esmerado brio agricultor. Os Veludos eram conhecidos na freguesia pelo bom aprumo das suas vinhas e dedicado trato do seu gado. Fernando não fugiu à regra. Bem pelo contrário, aperfeiçoou-a. Mesmo depois de conseguir o seu emprego na Empresa de Viação Terceirense, onde trabalhou largos anos como contino e chofer, as suas terras pareciam um jardim. Toda a gente elogiava aquele seu esforço, aliado ao da sua Filomena, de saber orientar bem a sua vida sem precisar dos favores alheios.
O único pedregulho no orgulho do Fernando foi a filha ter embarcado para a América com passagem de ida sem volta marcada. Da derradeira vez que nos sentámos à sombra da latada, já lhe notei a voz dorida e algo conformada. “O meu amigo sabe, tudo o que tenho, para falar verdade, já nem é meu. Está aqui à espera da minha filha para quando ela quiser voltar. Mas desconfio muito que ela queira. Quem toma o gosto àquela regalada vida na América, quer lá saber de vir para aqui esfolar o cabedal rogando a Deus que o mau tempo não nos venha estragar a colheita. Eu é que sei o que penei para bem de ter o que tenho hoje. E de que me serve? Os meus netos a crescerem longe de mim, na minha idade, dói cada vez mais.” Vi-lhe uma lágrima ou duas apenas, por ser dos tais rijos machos então ensinados a esconderem-nas, mas imagino facilmente todas as demais teimosas em aumentaram-lhe as rugas no rosto ressequido pelo rolar do tempo que não nos perdoa.
Acho que não é difícil olharmo-nos ao espelho e revermo-nos no tormento do Fernando, homem vertical à antiga, que acaba de se ausentar deste mundo, aos noventa, completamente desapegado dos seus haveres por já só ter em mente as raízes, os rebentos lá ao longe sem lhe poderem enxugar as rudes lágrimas que foi deixando de esconder. Doem-nos até fecharmos os olhos de vez.
Descansa em paz, meu valente Veludo.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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