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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

De João Bendito em Lincoln Califórnia


O RAPAZ QUE VENDIA LINGUÍÇA

As ruas da cidade começavam a movimentar-se por volta das 8.30 da manhã.
Até essa hora era pouco o ruído das rodas das carroças na calçada negra.
Na Rua do Rego, junto às estreitas portas da Padaria Angrense, alinhavam-se as típicas carroças altas, uma roda à frente e duas atrás, com as mãos calejadas dos jovens distribuidores a empurrarem no varal traseiro. Cheiravam a pão fresco!
Desciam os moços a Miragaia rumo à Sé, atravessavam o Alto das Covas em direção a São Pedro ou aos Quatro Cantos, espalhavam-se pelas ruas e travessas, batiam a vidraças, puxavam badalos e reteniam campainhas de portas. Às janelas, senhoras de lenço na cabeça, estendiam as sacas para os papo-secos e trocavam dois minutos de conversa com as vizinhas: “Maria, sabes se há chicharros na Praça?”
Agora já o comércio ia abrindo as suas portas. Em frente à grande Loja do Basílio Simões, carroças maiores, puxadas por possantes bois do Ramo Grande, esperavam a vez para descarregar as sacas de farinha que tinham trazido desde a Moagem, ali mais abaixo, da Rua da Rocha. Camionetas de caixa aberta iam levar mercadorias para mais longe, ao redor da ilha... as caixas de sabão, sacas de açúcar, farinha, sal e adubos. Coisas para as gentes e para as terras.
Certas esquinas e lugares estratégicos começavam a ser ocupados por vendedores ambulantes. Eram muitos e variados os produtos, acomodados em cestos de asa, levados à mão ou às costas, com o uso de um “pau de carrete”. Os gritos de “Hei! Peixe frêsque!” misturavam-se com o apregoar da fruta cheirosa e madura. Os “Madeiras”, mais para o fim da tarde, enrouquecidos pela ressalga e pela aguardente de cana, vendiam variadas espécies de pescado, estendido em caixas baixas de madeira cobertas com verdes feitos apanhados nas rochas de Cantagalo.
Tudo se vendia pelas ruas da cidade. Até uma engraxadela rápida e bem polida, fosse às mãos do Heitor e do José Cagão na Praça Velha ou do Sr. Manuel da Purificação, ao redor das mesas do Chá Barrosa. Favas e milho torrado, pevides salgadas e servidas com pequenas canecas de lata, enchiam as algibeiras dos soldados do BII17. Os meninos de estudo, esses compravam chocolates americanos ao Ti Francisco, um velhote gordinho e impecavelmente fardado de branco ou ao impertinente José “Jádeu”. Décadas antes, na praça maior da cidade, tinha sido o meu bisavô Machado o vendedor de favas e milho torrado. Não o conheci, recordo sim o filho dele, o Machado “Cambadinho” que torrava as suas pevides num pequeno forno na minúscula casinha onde vivia, nos cerrados da Canada Nova.
Cada um dos vendedores tinha o seu pregão característico. Por ai ainda andam os “Ora Mais, Ora Mais !” nas touradas e os “Ai Fresquinho!” dos gelados. Mas nenhum consegue tirar-me dos ouvidos o grito do Ti António Vareta, a encher a cidade com o cheiro do seu “Pão de Leite da Tarde!”. Trazia-os da padaria do Sr. Diogo, na Rua da Pereira, dentro de uma canastra de vimes, coberta com uma alva toalha que os mantinha quentes e apetitosos.
Conta-nos Augusto Gomes estórias e passagens de outros vendedores que palmilharam os passeios da Angra de outras épocas. Desses, já ninguém se lembra, perderam-se as suas memórias. A mim, contava-me o meu amigo Joaquim Maria da Costa, hoje com os seus quase 103 anos de idade, a engraçada peripécia do rapaz que vendia linguiça.
Ninguém lhe sabia o nome. Ai por volta do início da década de 40 do século passado, descia à cidade, vindo do Posto Santo. Descalço, vestia um fatinho de cotim, sevado e remendado. Numa cesta de vimes, embrulhados em toalhas de linho, trazia toros de cheirosa linguiça, empastada de gordura de porco. Já tinha alguns clientes certos. Na mercearia do Daniel “Lourinho” e na Loja do José Tomás deixava quantia apalavrada. Depois, subia a Rua do Galo e ia batendo às portas do costume. Vinha uma vez por semana, quase sempre à sexta-feira. Criou fama a linguiça do rapaz do Posto Santo. Não chegava para as encomendas.
Até que uma semana... o jovem não apareceu. Deixou de vir à cidade e as pessoas estranharam. Claro que havia outras fontes de linguiça, os talhos da Praça do Mercado também a vendiam e bem boa. Mas esta era especial, dizia o moço que era feita pelo avô.
Joaquim Costa, à porta da tenda do Tio Frederico correeiro, viu um rapazinho a vender laranjas e imediatamente reconheceu-o, era o mesmo que costumava passar com a linguiça. Não que fosse cliente, nunca comera da famosa linguiça mas o Tio Frederico era-o e gabava o tempero e a frescura dos enchidos.
Era Natal. Uns toros de linguiça frita caiam bem para acompanhar a ceia da Consoada. Tio Frederico já tinha encomendado um bom bacalhau no Armazém Zeferino e Tia Julieta mercou, na barraca do Ti António Bailhão, na Praça do Mercado, um bonito repolho, couve-flor e batatas doces para o cozido.
Alertado pelo sobrinho, o mestre correeiro assomou à porta da oficina e interpelou o envergonhado rapaz: “Ei piquêne, já não vens vender linguiça, o teu avô nunca mais fez? Será que ele morreu?”
O imberbe moço puxou o boné para cima da testa e respondeu, meio atrapalhado: “Na senhô, ele na morreu. Quem morreu foi as gatas e nunca mais houve gatins para acrescentar na carne das linguiças”.
Joaquim Costa, sorridente, desejou as Boas Festas ao Tio Frederico e deu graças ao Altíssimo por nunca ter provado o petisco. Esperou pelo Ti Vareta, que subia a Rua de Santo Espírito apregoando o seu “ Pão de Leite da Tarde!”
Esses sim, ele não deixava o seu quinhão a ninguém.
Lincoln, Ca. 3 Dez. 2016
João Bendito

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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