DIVAGAR DEVAGAR
Os genuínos cromos da bola
O contágio era imediato. Completar uma coleção, para os miúdos
da década de setenta do século findo, representava um imperativo de honra.
Era altura de fazer marcação cerrada às… mães. Não
há motivo para espanto. Mesada era palavra inexistente, mas gorjetas
constituíam prática recorrente no universo familiar.
A estratégia consistia em andar à roda da saia da
mãe e estar disponível para ir comprar, em passo de corrida, algum artigo em
falta na cozinha.
“João, vai à mercearia buscar sal e farinha, porque
a mãe esqueceu-se de comprar quando foi à “praça” (ou seja, o Mercado Duque de
Bragança, em Angra)”.
Era a frase que me salvava o dia. Entrava logo em
negociações diretas, mais acaloradas eventualmente do que os diálogos entre o
governo e parceiros sociais para a definição do Orçamento de Estado, e fazia
por garantir uns trocos para comprar duas/três saquetas de cromos.
Os euros estão fora desta história. Cada saqueta
custaria à volta de um escudo, trazendo três cromos se a memória não me
atraiçoa os números.
Lembro-me de uma coleção em particular. “O humor no
futebol”, onde as vedetas da bola apareciam sob o traço fino da ironia
projetada nas caricaturas de Francisco Zambujal.
Numa época onde a televisão se revelava a preto e
branco, a magia daqueles cromos (os autênticos que em nada se pareciam com os
papagaios que agora andam a debitar asneiras e ódios nos programas de suposto
debate televisivo) fazia da nossa
imaginação um verdadeiro arco-íris.
Existiam cromos bem complicados de arranjar. Uns
valiam a caderneta, outros a bola.
Chegar ao fim da coleção configurava um jogo de
paciência e perseverança.
Ter cromos repetidos para as trocas conferia um
poder que as crianças julgam só existir no reduto dos adultos.
Ganhei abafadores (peça quase bélica na aventura
dos berlindes) por causa de uns quantos cromos.
Na memória fica o registo de uma outra coleção,
formidável em termos pedagógicos, que dava a conhecer animais selvagens e
peixes de grande porte, onde a orca era o cromo mais desejado face à raridade.
A vida deu muitas voltas e, hoje em dia,
coleciona-se de tudo um pouco. Selos, moedas, canetas, borboletas, postais,
vinhos, carros, dívidas, mulheres bonitas e sei lá mais o quê.
Mas, colecionador que se preze, começa sempre pelos
cromos da bola. Dos genuínos, ora bem.
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