JORNALISMO EM DESTAQUE

485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Do colaborador Dr. António Bulcão



A mosca


Sábado passado, entrei no palco do Auditório do Ramo Grande sozinho. Foi a primeira vez, em décadas de música. Comecei por tocar em conjuntos musicais, depois o meu trabalho, mas acompanhado por outros músicos. Entrar e começar sozinho foi a primeira vez.
Comecei com uma canção que se chama “cegonha”. A coisa vai por ali adiante e acaba assim: “quero um filho que… possa voar”. As reticências estão aqui porque há uma pausa musical. Pois canto o filho que, suspendo os acordes e não é que vem direita a mim, com uma determinação rara, uma mosca enorme? Prolonguei a pausa. Parecia-me de todo foleiro dizer possa voar com uma mosca que mais parecia um bombardeiro às voltas da minha cabeça.
Até parecia cena produzida. Coisa para ser comentada depois. O gajo cuidou dos pormenores todos, ao ponto de domesticar uma mosca, que apareceu no momento certo. Parecia a águia Vitória. 
Lá soltei o “possa voar”, fiz um gesto largo com o braço direito, para parecer a teatralização de um voo. Poucas pessoas terão reparado que, na realidade, mais do que qualquer devaneio dramático, eu queria era mesmo espantar a sacana da mosca, que parecia atraída pela minha careca, como que vendo ali uma pista segura para pousar.
Durante o segundo tema, pus-me a pensar na mosca.
Seria a insectização de uma alma qualquer, sei lá, um familiar falecido, que vinha sob a forma de mosca, para me desejar boa sorte no concerto?
Asseguro-vos que foi muito estranho. A ponto de me perturbar. Já toquei naquele Auditório muitas vezes. Concertos de solidariedade, com a Filarmónica da Praia, com o Luis Bettencourt, com o Mário Laginha, com quarteto, agora em trio. Nunca tal me tinha acontecido. Repare-se que são dezenas de horas naquele palco, incluindo ensaios.
Não podia, então, ser por acaso, a presença daquele monstro alado, que faria inveja a alguns dos bichos que aparecem no Parque Jurássico. E logo naquela canção, que acaba com a palavra voar.
Seriam os ausentes, muitos deles que tinham prometido, assegurado, jurado presença? Alguns deles com responsabilidades autárquicas, naquela autarquia? Estariam junto naquele corpo negro, assim me dizendo “voa, voa, meu querido, estamos contigo nesta hora, não fisicamente mas tomando esta forma inusual, para tornar este momento ainda mais espectacular”?
Não, não fazia sentido. E bastavam-me os presentes, que eram muitos, nem me lembrei (ou lembrarei) dos ausentes. Todos sabemos que a oferta cultural na ilha é muita e valorosa, como levar a mal aos que preferiram ir ouvir o Sting na Agualva ou a Sinfónica de Londres nas Fontinhas?
De repente, entendi. Aquela não era uma mosca qualquer. Era uma mosca varejeira. Ora todos sabemos qual o petisco preferido desse tipo de mosca. A sua presença, ali, naquele momento em que, sozinho, tentava domar os nervos, era a prova de que os ausentes, apesar de o serem, queriam desejar-me boa sorte, com a máxima normal entre gente de palco: “Muita merda”!
António Bulcão
(publicado hoje, no Diário Insular)
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

Sem comentários:

Enviar um comentário