Cidades adoptivas:
Coimbra e Lisboa
A. V.
O mais açoriano de todos os escritores açorianos
não hesitou em adoptar como suas duas cidades, Lisboa e Coimbra, nas quais
passou a maior parte da vida. Nelas se relacionou com os movimentos culturais e
políticos; as tertúlias, os jornais e revistas. Constituiu família em Coimbra.
Casou em Coimbra e em Coimbra nasceram os seus filhos Georgina (1926), Jorge
(1929), Manuel (1930) e Ana Paula (1931).
Chegou a Coimbra em finais de 1921 para acabar o liceu e ter acesso à
Universidade. Matriculou-se em Direito e transitou para Letras. Iniciou em
Coimbra uma actividade cultural organizada que lhe permitiu afirmar-se como
universitário e homem de Letras. Revisor do quadro da Imprensa Universitária,
contou com o apoio intelectual e pessoal do seu director, Joaquim de Carvalho,
que classificava, juntamente com Aurélio Quintanilha e Afonso Duarte, entre os
seus "mestres socráticos", pois nunca fora aluno de Joaquim de
Carvalho na Faculdade de Letras. Exerceu, nos anos 20 e 30, activa participação
no Centro Académico Republicano; na Maçonaria; na Associação dos Estudantes de
Letras; no Orfeão Académico e na Associação Cristã da Mocidade, organização
protestante com influência no meio universitário. A acção cívica e política de
Vitorino Nemésio integra-se na linha doutrinária do segundo grupo da Seara
Nova, contra o "Integralismo Lusitano", o CADC (organização de
cariz católico e/ou monárquico) e na luta contra a ditadura militar implantada
em 28 de Maio de 1926 e que se consolidará, em 1932, com Salazar, na chefia do
poder. Contemporâneo da Presença, colega e correligionário dos
seus directores, não faz parte do grupo fundador.
Já depois de se fixar em Lisboa, sentia-se bem em Coimbra, ou numa certa
Coimbra que não perdeu a alma: "A cidade cresceu um pouco anarquicamente
[...] a Lusa Atenas, com o desmonte da Alta, tem um pouco menos de Atenas e
bastante mais de pato-bravo..."
Quis ficar sepultado em Coimbra, no Cemitério de Santo António dos Olivais. O
desejo cumpriu-se. Foi a 21 de Fevereiro de 1978.
Para Nemésio, quando, em 1919, estava na ilha Terceira, Lisboa significava
romper com a solidão e o marasmo, realizar-se como poeta e escritor, encontrar
no jornalismo um modo de sobrevivência e de afirmação pública. Chegou para
cumprir o serviço militar e aproximar-se dos círculos intelectuais. Exerceu o
jornalismo profissional. Voltou a Lisboa, em 1930, para concluir a licenciatura
em Filologia Românica. Fez doutoramento e concurso para professor. Ascendeu a
catedrático a 16 de Julho de 1942.
Mas Nemésio não se limitou ao magistério universitário. Prosseguiu a
colaboração nos jornais, estendeu a colaboração à rádio e à televisão. Esteve à
frente da orientação editorial da Bertrand, foi um dos directores da Alliance
Française e fez parte da classe de Letras da Academia das Ciências.
Desde os anos 30 aos anos 70, residiu, por exemplo, e durante sucessivas
décadas, num quarto andar da Rua Sociedade Farmacêutica, a dois passos do
Marquês de Pombal, uma das transversais da Avenida Duque de Loulé para o Conde
Redondo. Esta casa foi para Nemésio a sua décima ilha. Ali escreveu a quase
totalidade da sua obra literária. Viveu, também ali, a crise religiosa que
atingiu ressonância pública n'O Pão e a Culpa, O
Verbo e a Morte e Retrato do Semeador.
Desde o inicio dos anos 70 sentia-se "um homem cercado".
Multiplicavam-se os problemas e acentuava-se a doença. Uma certa euforia não
conseguia esconder o estado de espírito que o dominava Ele próprio declarou:
"Viver dói. Sobretudo o viver de agora (para quem viveu muito,
naturalmente!). Dói pelo que custa a aguentar a cadeia cerrada das obrigações à
pressa - duplamente cadeia, pois é corrente e cárcere."
Em grande parte devido à televisão, todos o conheciam e lhe falavam onde quer
que fosse.
"Todos os actores", escreveu Nemésio, "gostam dos palcos onde se
demoram mais tempo, e o último tende a acamar por cima do primeiro como os
estratos geológicos que deixam a terra à flor. É a ternura e apego à
fragilidade de cada dia; o jogo duplica entre a efemeridade e o eterno."
Existiu, sem dúvida, um vínculo muito forte com Lisboa, mas as raízes mais
profundas estavam em Coimbra e, muito em especial, na Praia da Vitória, lá onde
os navegadores do Infante abriram à Europa os mares do Oeste.
DN 17-12-2001
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