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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Figuras quer jamais serão esquecidas - "Monstro Sagrado" Vitorino Nemésio



Cidades adoptivas: Coimbra e Lisboa


A. V.



O mais açoriano de todos os escritores açorianos não hesitou em adoptar como suas duas cidades, Lisboa e Coimbra, nas quais passou a maior parte da vida. Nelas se relacionou com os movimentos culturais e políticos; as tertúlias, os jornais e revistas. Constituiu família em Coimbra. Casou em Coimbra e em Coimbra nasceram os seus filhos Georgina (1926), Jorge (1929), Manuel (1930) e Ana Paula (1931).

Chegou a Coimbra em finais de 1921 para acabar o liceu e ter acesso à Universidade. Matriculou-se em Direito e transitou para Letras. Iniciou em Coimbra uma actividade cultural organizada que lhe permitiu afirmar-se como universitário e homem de Letras. Revisor do quadro da Imprensa Universitária, contou com o apoio intelectual e pessoal do seu director, Joaquim de Carvalho, que classificava, juntamente com Aurélio Quintanilha e Afonso Duarte, entre os seus "mestres socráticos", pois nunca fora aluno de Joaquim de Carvalho na Faculdade de Letras. Exerceu, nos anos 20 e 30, activa participação no Centro Académico Republicano; na Maçonaria; na Associação dos Estudantes de Letras; no Orfeão Académico e na Associação Cristã da Mocidade, organização protestante com influência no meio universitário. A acção cívica e política de Vitorino Nemésio integra-se na linha doutrinária do segundo grupo da Seara Nova, contra o "Integralismo Lusitano", o CADC (organização de cariz católico e/ou monárquico) e na luta contra a ditadura militar implantada em 28 de Maio de 1926 e que se consolidará, em 1932, com Salazar, na chefia do poder. Contemporâneo da Presença, colega e correligionário dos seus directores, não faz parte do grupo fundador.

Já depois de se fixar em Lisboa, sentia-se bem em Coimbra, ou numa certa Coimbra que não perdeu a alma: "A cidade cresceu um pouco anarquicamente [...] a Lusa Atenas, com o desmonte da Alta, tem um pouco menos de Atenas e bastante mais de pato-bravo..."

Quis ficar sepultado em Coimbra, no Cemitério de Santo António dos Olivais. O desejo cumpriu-se. Foi a 21 de Fevereiro de 1978.

Para Nemésio, quando, em 1919, estava na ilha Terceira, Lisboa significava romper com a solidão e o marasmo, realizar-se como poeta e escritor, encontrar no jornalismo um modo de sobrevivência e de afirmação pública. Chegou para cumprir o serviço militar e aproximar-se dos círculos intelectuais. Exerceu o jornalismo profissional. Voltou a Lisboa, em 1930, para concluir a licenciatura em Filologia Românica. Fez doutoramento e concurso para professor. Ascendeu a catedrático a 16 de Julho de 1942.

Mas Nemésio não se limitou ao magistério universitário. Prosseguiu a colaboração nos jornais, estendeu a colaboração à rádio e à televisão. Esteve à frente da orientação editorial da Bertrand, foi um dos directores da Alliance Française e fez parte da classe de Letras da Academia das Ciências.

Desde os anos 30 aos anos 70, residiu, por exemplo, e durante sucessivas décadas, num quarto andar da Rua Sociedade Farmacêutica, a dois passos do Marquês de Pombal, uma das transversais da Avenida Duque de Loulé para o Conde Redondo. Esta casa foi para Nemésio a sua décima ilha. Ali escreveu a quase totalidade da sua obra literária. Viveu, também ali, a crise religiosa que atingiu ressonância pública n'O Pão e a CulpaO Verbo e a Morte e Retrato do Semeador.

Desde o inicio dos anos 70 sentia-se "um homem cercado". Multiplicavam-se os problemas e acentuava-se a doença. Uma certa euforia não conseguia esconder o estado de espírito que o dominava Ele próprio declarou: "Viver dói. Sobretudo o viver de agora (para quem viveu muito, naturalmente!). Dói pelo que custa a aguentar a cadeia cerrada das obrigações à pressa - duplamente cadeia, pois é corrente e cárcere."

Em grande parte devido à televisão, todos o conheciam e lhe falavam onde quer que fosse.

"Todos os actores", escreveu Nemésio, "gostam dos palcos onde se demoram mais tempo, e o último tende a acamar por cima do primeiro como os estratos geológicos que deixam a terra à flor. É a ternura e apego à fragilidade de cada dia; o jogo duplica entre a efemeridade e o eterno."

Existiu, sem dúvida, um vínculo muito forte com Lisboa, mas as raízes mais profundas estavam em Coimbra e, muito em especial, na Praia da Vitória, lá onde os navegadores do Infante abriram à Europa os mares do Oeste.

DN 17-12-2001
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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