Retrato de uma família feliz
Há uma história antes de Maria do Rosário e Roberto serem “os Carneiro”
que dá também um tempo, um país, um amor. Não são, ao O23 de Novembro de 2014,
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Anabela Mota Ribeiro
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Falámos
do álbum de família, com nove filhos, uma Babilónia ao almoço. Mas antes disso
há a vida política, a vivência religiosa, as famílias de origem que
contribuíram decisivamente para a sua formação, o piano que tocaram (pouco) a
quatro mãos.
Maria do Rosário nasceu
em 1948. Roberto nasceu em 1947. Foram políticos, empenharam-se civicamente
antes e depois da Revolução de Abril. A Educação esteve no centro da actividade
profissional de ambos, sobretudo de Roberto, que foi ministro entre 1987 e
1991. (Nessa altura, o dinheiro era tão pouco que chegaram a pagar o pão com o
cartão de crédito!) Casaram-se em 1973.A entrevista ao casal, substancialmente
focada nas pessoas que foram antes de formarem a sua conhecida e numerosa
família de nove filhos (quiseram ter 15), aconteceu em casa. Na sala da casa,
onde há objectos sem fim, num relativo desalinho que não impressiona e para o
qual Maria do Rosário chama a atenção (para dizer que é o compartimento mais
arrumado da casa). Há fotografias dos filhos, móveis de família, arte. É uma
sala, e uma casa, onde há sempre pessoas e espaço para mais pessoas. Filhos e
netos. E por isso vozes, e sons de instrumentos musicais, e eventualmente o
choro de uma criança.
A
entrevista foi ao fim da tarde. Parece incrível que tenham estado duas horas a
conversar, sem interrupção. Saíram atrasados para jantar em casa de amigos.
Entretanto, tinham contado como foi — e é — a sua vida feliz.
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Houve um tempo em que não eram “os
Carneiro”, pais de nove filhos. Comecemos pelo que está antes, pelo momento em
que se encontraram.
Roberto — Foi no jornal universitário O Tempo. O meu cunhado,
o Adelino Amaro da Costa, era o editor, eu era o director. Fizemos umas
reportagens sobre residências universitárias.
Rosário — Para ir às residências femininas, achava-se que era melhor irem raparigas. Houve um recrutamento de mão-de-obra feminina e eu fui à pala do meu irmão. Foi aí que nos vimos pela primeira vez.
Rosário — Para ir às residências femininas, achava-se que era melhor irem raparigas. Houve um recrutamento de mão-de-obra feminina e eu fui à pala do meu irmão. Foi aí que nos vimos pela primeira vez.
O seu cunhado era seu amigo?
Roberto — Muito amigo e próximo. Lembro-me perfeitamente da
Maria do Rosário no nosso primeiro encontro. Usava uns hot pants pretos.
Uns calções muito colados, muito apertados.
Rosário — Apertados? Eram curtos mas não eram apertados, porque não se usava.
Roberto — Boa perna, bom pernil.
Rosário — [riso] Obrigada.
Rosário — Apertados? Eram curtos mas não eram apertados, porque não se usava.
Roberto — Boa perna, bom pernil.
Rosário — [riso] Obrigada.
O que é que lhe chamou à atenção nela?
Roberto — A personalidade.
Rosário — A sério?
Roberto — Muito assertiva. E era elegantíssima, pesava uns 50 quilos. Nenhuma filha cabe no teu vestido de casamento.
Rosário — Só a Madalena. Não me achava nada magríssima, nem elegantíssima. Sempre achei que era gorda. Deve ser da cara. Agora já não a tenho tão redonda. Vai esmorecendo.
Rosário — A sério?
Roberto — Muito assertiva. E era elegantíssima, pesava uns 50 quilos. Nenhuma filha cabe no teu vestido de casamento.
Rosário — Só a Madalena. Não me achava nada magríssima, nem elegantíssima. Sempre achei que era gorda. Deve ser da cara. Agora já não a tenho tão redonda. Vai esmorecendo.
Como é que o seu marido era?
Rosário — A primeira vez que o vi, lembro-me perfeitamente, ele
tinha uma camisola de gola alta branca. O cabelo curtíssimo, com uma palinha
mesmo à chinês. E pensei: “Que mal que lhe fica aquele corte de cabelo.”
Achei-lhe muito pouca graça. Ele era quem estava a dar as indicações, a dizer o
que é que tínhamos de fazer.
Roberto — Nunca gostou de receber ordens...
Roberto — Nunca gostou de receber ordens...
Tinha a ideia de ser essa rapariga assertiva?
Rosário — Não. A ideia que tenho de mim era de ser muito alegre.
Bem, se calhar dizia assim...
Roberto — Postas de pescada.
Rosário — Adorava dar postas de pescada. Mas sempre tive de mim a ideia de ser uma pessoa com inibições. Tem que ver com uma marca educativa.
Roberto — Postas de pescada.
Rosário — Adorava dar postas de pescada. Mas sempre tive de mim a ideia de ser uma pessoa com inibições. Tem que ver com uma marca educativa.
Sabia o que queria? No Portugal de então, com limitações que
depois podemos detalhar, que ideia tinha para a sua vida?
Rosário — Quando conheci o Roberto, tinha passado por várias
fases. Tinha achado que ia ser prima
ballerina. Mas a minha mãe disse-me: “Agora, vais estudar.” A minha
mãe nasceu em 1914 numa família um pouco excêntrica. O meu avô determinou que
nenhuma das filhas podia ter diploma. A minha mãe fez o Conservatório de piano
todo, excepto o exame final. Tinha essa tristeza. E sobretudo tinha a tristeza
de não ser autónoma na sua capacidade material. Foi qualquer coisa que desde
muito nova me imprimiu: ser independente.
Esteve um ano em Direito e depois estudou Ciências Sociais e
Políticas no ISCSP.
Rosário — Deu-me instrumentos fantásticos para ver o mundo à
minha volta, percebê-lo.
O que é que o Roberto queria fazer com a sua vida quando era
jovem?
Roberto — Queria ser pianista. O sonho era ser músico, como o
meu pai. A minha mãe não deixou. Empurrou-me sempre para um curso onde pudesse
ganhar a vida de forma regular e menos ambulatória.
Onde radica a preocupação da sua mãe?
Roberto — Toda a minha família foi forçada a migrar durante a
Segunda Grande Guerra, logo seguida da guerra civil na China, opondo comunistas
contra nacionalistas. O meu pai era músico profissional, mas morreu cedo, em
1963, quando eu tinha apenas 16 anos. Fiquei só com a minha mãe. E era filho
único. Foi como se tivesse desaparecido uma parte da minha vida. Tive de me fazer
precocemente homem, abandonar o período idílico teenager. Decidi então
que queria ser físico nuclear.
De onde veio essa ideia?
Roberto — Um “velho” Bensaúde mandou-me chamar de propósito da
ilha Terceira para S. Miguel, onde estava acamado, para me orientar. [Eu devia
ir] para os Estados Unidos cursar o MIT. Enviou-me para fazer as provas de
acesso nesse mesmo ano (1963).
Acabou por fazer Engenharia Químico-Industrial, no Técnico.
Roberto — Decidi ficar em Portugal dada a relação muito próxima
que mantinha com a minha mãe e com a parte da família do meu pai que residia em
Lisboa. Engenharia Químico-Industrial era o mais próximo dos estudos das
partículas elementares e da Química-Física Nuclear, temas que me fascinavam.
Sei que a sua mãe falava mal o português...
Roberto — Os meu pai nasceu em Xangai e a minha mãe em Hong
Kong. Falávamos inglês em casa. Chinês de Xangai e cantonês são um pouco como
escandinavo e grego... O facto é que a minha mãe nunca conseguiu apropriar a
fonética nem a sintaxe do português.
Então com quem aprendeu a falar português? Fala português sem
sotaque.
Roberto — Na escola, com os amigos. Cheguei à escola e não sabia
falar português, só inglês. Fiz a escola primária e o liceu na Terceira. As
minhas memórias mais recônditas são açorianas, do mar intensamente azul que se
encontra com o céu lá longe, na linha do horizonte...
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