O Encanto da Vida
Todas
as noites acordado até desoras, à espera da última cena de pancadaria num jogo
de futebol, do último insulto num debate parlamentar, do último discurso
demagógico num comício eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado,
da última farsa no palco internacional. Crucificações masoquistas, que a
prudência desaconselha e a imprudência impõe. Vou deste mundo farto de o
conhecer e faminto de o descobrir.
Mas não há perspicácia, nem constância de atenção capazes de lhe prefigurar os
imprevistos. O que acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem. A
violência, o facciosismo, a ambição de poder, a crueldade e o exibicionismo não
têm limites. Felizmente que a abnegação, a generosidade e o altruísmo também
não. E o encanto da vida é precisamente esse: nenhum excesso nela ser
previsível. Nem no mal nem no bem. E não me canso de o verificar, de surpresa
em surpresa, à luz dos acontecimentos.
Quando julgo que estou devidamente informado sobre o amor, sobre o ódio, sobre
a santidade, sobre a perfídia, sobre as virtudes e os defeitos humanos, acabo
por concluir que soletro ainda o á-bê-cê da realidade. Cabeçudo como sou, teimo
na aprendizagem. Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento
meu conhecido, que durante muitos anos procedeu como tal e, como tal, o tratei
sempre de pé atrás, generosa e secretamente subsidiava um asilo de infância
desvalida.
Miguel Torga, in 'Diário (1993)'
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