Peter e a mosca
Peter roía as unhas, no lugar que lhe tinha sido destinado na sala onde decorria o congresso do seu partido. Inscrevia-se para uma intervenção, ou não?
Ah, dúvida terrível para qualquer delegado a um congresso. Botar palavra ou manter-se em silêncio, eis a questão. Por um lado, a sua costela de orador fazia-lhe formigueiros nas cordas vocais, por outro o cérebro teimava em repetir aquela máxima popular de que um tolo calado corre menos riscos.
Peter sabia, intimamente, que seria quase certa a expulsão, se fosse ao púlpito partilhar coisas do seu passado. Tratava-se de uma confissão cuja penitência só poderia acarretar um pontapé sumário no rabo.
Mas manter o segredo devorava-lhe a consciência todas as manhãs. Tinha de falar, libertar-se daquele fardo terrível que atrapalhava a sua militância, mesmo que ninguém soubesse das diabruras passadas. Levantou o dedo indicador da mão direita para a mesa do congresso e só o baixou quando teve a certeza de que o seu nome constava da lista dos oradores.
Chegada a sua vez, avançou trémulo para o estrado, chegou a beiça ao microfone e começou:
“Companheiros: hesitei muito, mas tomei a decisão de vos confessar um passado do qual não me orgulho, mas que é o meu, dele não me podendo livrar, restando-me apenas atenuar as culpas que sinto na minha alma…”.
Com esta introdução, captou logo a atenção de todos os presentes. Era coisa diferente do que geralmente acontece em congressos. Uma confissão! Que delícia…
“Companheiros, em criança e adolescente, não tratei os animais com o carinho que os mesmos merecem. Desrespeitei os direitos de muitos bichos, de forma irresponsável e, nalguns casos até, roçando as fronteiras do sadismo”.
Um rumor de espanto percorreu a sala. Seria possível? O Peter que conheciam era extremoso defensor de qualquer animal, da joaninha ao milhafre, passando por vacas, burros e outros bichos de grande porte.
Só para terem uma noção, Peter era capaz de ficar imóvel largos minutos para não atropelar um bicho da conta, desviando os bicos dos sapatos do amoroso rastejante, assim como quem deita contas à vida. Não comia carne, nem peixe, era um exemplo para todos, havendo até quem falasse na possibilidade de chegar a secretário-geral da agremiação. Que poderia ter feito no passado, assim tão grave?
“Companheiros, eu era terrível. Munido de uma lupa, concentrava a luz solar num ponto brilhante e abrasivo, para dizimar formigas. Iam elas nos seus carreiros, labutadoras como hoje sei serem, e morriam às centenas sob a minha lupa, dentro da minha cabeça as formigas eram nazis e eu um piloto aviador da Royal Air Force”.
Mau, sem dúvida, pensaram os delegados. Mas coisas de canalha pequena, nada que justificasse grande censura.
“Já mais crescido, continuei a usar a lupa, mas com crescente requinte. Colava uma pequena chapa de metal na cabeça de um alfinete e depois trancava a ponta do mesmo no lombo dos caracóis. Quando concentrava o sol com a lupa na chapa de metal, os bichos tornavam-se rápidos como não eram, abandonavam casas de casca com uma pressa que só visto…”.
Pior, pensaram os delegados. A idade já era outra, a responsabilidade deveria ter crescido à velocidade do corpo. Um rumor de gente incomodada tomou a sala.
“Agora vem a parte pior”, anunciou Peter. “Chegada a puberdade, num tempo sem internet nem filmes pornográficos, a gente tinha de se safar para conseguir algum prazer. Eu excedi todas as expectativas. Apanhava moscas, enchia a banheira, metia-me dentro da água e excitava-me acariciando os genitais. Quando o órgão ficava duro, para além da cabeça a glande era a única parte do meu corpo que emergia, qual periscópio de um submarino glaciar observando as paredes brancas da banheira”.
Apesar de deliciado com a metáfora de Peter, um delegado impacientou-se: “Mas onde é que entram as moscas, nesse cenário?”.
“Pois. Avisei que era a parte pior. Eu arrancava as asas a uma mosca e pousava-a na glande. Rodeada de água por todos os lados, a desgraçada percorria o órgão vezes sem conta, sem desconfiar que me prestava prazeroso serviço. Se a mosca se desequilibrava, com o consequente afogamento, saltava outra para a função…”.
“Fora, fora com este animal”. O congresso estava todo de pé. “Rua, seu masoquista”.
Destruído estava, irremediavelmente, o mito de que Peter era incapaz de fazer mal a uma mosca.
Cabisbaixo, abandonou a sala, sob apupos e algumas bolas de papel atiradas por congressistas mais fanáticos.
Chegado à rua, Peter foi engolido por uma matilha de jornalistas curiosos. Veio logo a pergunta mais óbvia:
“Senhor Peter, com um passado tão vergonhoso, o que lhe deu para aderir a um partido com estas características?”.
“Meus senhores, perdoareis, mas é evidente. Sendo eu Peter, só podia ser do PAN”.
António Bulcão
(publicada hoje, no Diário Insular)
Sem comentários:
Enviar um comentário