Esta coisa de ter amigos que gostam de conversar é um consolo para o espírito. Mesmo quando essa amizade e essa conversa é mantida à distância de muitas milhas, o uso das modernas tecnologias faz com que o intercâmbio se realize à velocidade da luz e com a simplicidade de uns meros cliques nas teclas do computador ou um suave esfregar dos dedos no ecrã do telefone portátil.
O meu amigo J V e a sua prima Margaret, naturais da Terceira, cresceram juntos, aqui no norte da Califórnia. Brincaram, estudaram e frequentaram os convívios familiares e as Festas do Espírito Santo em sã camaradagem. Agora, avós que já são, gostam de trocar mensagens a recordarem os tempos da juventude. O facto de o J V viver com a sua família no emaranhado dos subúrbios da grande metrópole do sul, não impede que o continuem a fazer regularmente e, para meu benefício, incluem-me no “Cc” dos emails, de forma que fico a conhecer muitas estórias que, de outra modo, nunca iria saber.
Esta semana os dois primos, quase só por causa de um pequeno objeto, relembraram o trabalho dos respectivos pais, cunhados, um faialense e outro rabo-torto, na Gladding McBean, o maior complexo industrial que existe aqui na cidade de Lincoln, onde eu vivo. Fundada em 1875 depois da descoberta de grandes depósitos de barro, a fábrica tornou-se no mais importante fabricante de objetos e elementos decorativos em terracota. As fachadas dos grandes edifícios comerciais e de escritórios das maiores cidades da Califórnia (e não só) eram embelezadas com bonitas peças aqui desenhadas e construídas com a ajuda de muitas mãos portuguesas. Para eles, era a fábrica dos pipes, porque uma outra secção da fábrica ocupava-se da manufacturação de grandes quantidades de canos (pipes) de barro para encanamentos, esgotos e outros fins.
Agora o número de trabalhadores portugueses na Gladding McBean já é muito reduzido. Contudo, ainda quando falo com alguns, já reformados, noto nas conversas deles sentimentos contraditórios quando se referem aos anos que lá passaram. O trabalho era muito duro e sujo e as condições não eram as melhores, sujeitos a elevadas temperaturas à boca de fornos que pareciam o Inferno vivo. “Só serviu para me rebentar as costas e depois mandaram-me para casa com tuta e meia na algibeira”, contou-me um, desiludido. Terá sido por isso também que o J V só trabalhou lá um dia, para desgosto do pai, que tinha pedido ao supervisor para lhe dar trabalho durante as férias da Universidade. “Pelo menos deu para pagar as botas que me obrigaram a comprar...”, escreveu o meu amigo, com ironia. De certeza que muitos outros, ao contrário, se sentem afortunados por terem tido trabalho durante muitos anos e de poderem usufruir do decente bem-estar que as poupanças dos planos de reforma lhes proporcionam.
A leitura destas recordações dos dois primos trouxeram-me à lembrança os meus tempos de empregado fabril californiano. É verdade, também vivi essa faceta na minha vida de imigrante. Quem me conseguiu o emprego foi o Sr. Durvalino Sarmento, a pedido do seu grande amigo, o meu pai. Entrei para a fábrica das latas, como era conhecida uma grande unidade industrial em Hayward, onde se transformavam folhas de alumínio em milhões de latas para todo o género de coca-colas, sodas e cervejas. O trabalho não era mau, fazia-se bem e ganhava-se ainda melhor, o que eu não gostava nada era do horário. Os turnos, de 12 horas seguidas, eram desgastantes: nas 6ªs, sábados e domingos, trabalhava das sete da manhã às sete da tarde; na semana seguinte, mudava para o contrário, nas 3ªs, 4ªs e quintas-feiras, das sete da noite até às sete da manhã! Andava com a cabeça e os sonos baralhados e, acima de tudo, com a vida familiar completamente de pernas para o ar, já que a “patroa” tinha um horário normal de 2ª a 6ª e a gente mal se via. O bom do Sr. Durvalino desculpou-me mas eu tive que procurar outro rumo ao fim de seis meses.
Foi então que entrei para a fábrica dos fogões, onde fui companheiro do cronista dos Rasgos D’Alma no Tribuna Portuguesa, e nos tornámos amigos para o resto da vida. Tanto ele como eu não tínhamos experiência nenhuma no uso de qualquer espécie de ferramentas mas conseguimos desenrascar o trabalho, principalmente com a ajuda dos irmãos Tomazinho, simpáticos picarotos, um deles, o Manuel, até tinha sido marinheiro e contramestre do “Ponta Delgada”. Sempre tive a sorte de ter amigos que me botaram a mão...
Fizeram-me bem, estes trabalhos. Aprendi a ser imigrante, a conhecer melhor os modos e costumes da indústria americana, a criar novas amizades e a estabelecer boas regras de conduta. Não andarei longe da verdade se afirmar o mesmo em relação a muitos milhares de compatriotas que se transformaram em dedicados e competentes trabalhadores. Fábricas havia-as por toda a parte e... eram as nossas fábricas. Todos as conheciam, bastavam duas palavras para as designar: a fábrica dos lápis, em San Leandro, a fábrica dos buses, a fábrica das janelas, em Sacramento, a fábrica do papel e a fábrica do sal, em Newark, as fábricas dos electrónicos, onde centenas de portuguesas queimaram os dedos e os olhos a montarem PC boards.
As botas que o J V comprou para a fábrica dos pipes não lhe devem ter causado calos de monta, ao contrário do que padeceram muitos outros conterrâneos nas fábricas desta América. O J V teve o discernimento e a oportunidade para tirar um curso superior que lhe permitiu seguir uma brilhante carreira no ensino. E esse é que é um dado, uma mudança que, felizmente, se vem a notar nos últimos anos: os jovens luso-portugueses já não procuram empregos em fábricas, preferem dedicar-se aos estudos e enveredar por outros campos, menos exigentes fisicamente e mais compensadores para o futuro. Não que o trabalho fabril seja desonroso, até pelo contrário, mas, sinceramente, eu também gostaria mais de ver os meus e os netos do J V e da Margaret a desenharem computadores, a conceberem foguetões espaciais e satélites de comunicações ou até mesmo a criarem latas de alumínio, em vez de terem que sujar as mãos com barro para fabricarem canos para esgotos.
Vamos a ver se o J V e a sua prima continuam a revisitar os tempos da sua juventude, dar-me-ão material para mais umas crónicas...
Lincoln, Ca. 20 de Janeiro, 2019
João Bendit

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