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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

domingo, 24 de março de 2019

Do escritor Joel Neto


Opinião

É entusiasmante conhecer novos autores e mais entusiasmante é quando os mesmos são portugueses. Eleva-me o orgulho luso que me corre nas veias a patamares ainda mais altos.

Joel Neto e o seu Arquipélago aterraram cá em casa muito por causa da sinopse presente na contracapa da obra e da viagem que prometiam por terras açorianas. Como ainda não tive o privilégio de viajar fisicamente a nenhuma das nove ilhas que compõem um dos últimos paraísos na terra, achei que uma ida até à ilha Terceira através de 459 páginas recheadas de palavras seria uma alternativa bem gostosa. E não me enganei.

Do princípio ao fim, a leitura de Arquipélago envolve-nos, enreda-se em nós e subjuga-nos como o típico nevoeiro açoriano que nos impossibilita ver para além do que está ao alcance das nossas mãos. Nos oito dias em que o romance me fez companhia foi assim que me senti, atrapada num redil de paisagens geográficas, climatéricas, gastronómicas, linguísticas, místicas, míticas, históricas, sociais e pessoais. Ou seja, presenteou-me com uma viagem iniciática ao mundo terceirense, uma descoberta que vai muito para além dos conhecimentos rudimentares que possuía sobre esse “calhau” perdido nas águas profundas do Atlântico.

Fiz essa viagem iniciática acompanhando de muito pertinho os passos do protagonista, o carismático José Artur que regressa à aldeia natal depois de muitos anos afastado das terras vulcânicas que o viram nascer. Na bagagem traz um casamento desfeito, uma relação atribulada com uma aluna, outra caracterizada pelo distanciamento com o seu pai e o seu único filho e muito desencanto e apatia perante o que a vida lhe poderá trazer.

É assim um homem como tanto outros sem nada em particular que o destaque dos restantes. É o perfeito retrato de um anti-herói, mas precisamente por isso não se lhe consegue resistir. Eu pelo menos não consegui. Desde que poisa os pés na Terceira, José Artur começa lentamente a renascer. Olha, aprecia, cheira, ouve, recorda. Interpreta um duplo papel – por um lado, atua como se um turista fosse, mas por outro inicia um processo de deitar raízes, de conquistar o seu lugar numa aldeia que já foi sua e consequentemente voltar a segurar as rédeas da sua existência, uma existência que apenas parece fazer pleno sentido ali, no meio do oceano, num pedaço de terra com características muito próprias.

Aliado a esta criação de raízes está uma demanda que “escavaca” a história do arquipélago, mais propriamente da ilha Terceira, que questiona verdades “inquestionáveis”, que põe em aberto, através de inúmeros indícios físicos, a hipótese de as suas terras terem sido habitadas antes de os portugueses lá terem chegado. Estão igualmente tradições, ritos únicos, que harmonizam homem e natureza, que ditam regras sociais que recordam outros tempos e que aliam a ancestralidade aos finais do século XX e quem sabe princípios do século XXI.

Arquipélago é então isto, mas é ainda muito mais. É uma obra extraordinariamente bem escrita, povoada por personagens moldadas pela paisagem que as rodeia, por uma vida carregada de inconstâncias, de reviravoltas repentinas e de uma melancolia ou acomodação tão semelhantes ao clima açoriano. Nomeio aquelas que mais me tocaram – Luísa, tão inatingível e tão cativante; Elias Mão-de-Ferro, que carrega uma vida de dor e de sofrimento; José Guilherme, avô de José Artur e que nos conquista pela sua retidão e sentido do dever; La Salete, que nos amansa com a sua presença e nos conforta os sentidos e a alma através dos pratos que confeciona; André, filho de José Artur, uma surpresa de responsabilidade e maturidade e finalmente Maria Rosa, filha de Luísa, comparsa de José Artur nas suas aventuras hortícolas e que me derreteu desde o primeiro contacto que tive com ela.

Este romance é ainda um hino ao que de mais genuíno tem a ilha Terceira – as suas iguarias gastronómicas (é humanamente impossível não salivarmos com as descrições magistralmente olfativas e gustativas que o autor faz da redescoberta culinária de José Artur na modesta sala do “tasco” do “Cabrinha”, pai de La-Salete) e a sua língua, um português mais antigo, digamos mais original, e temperado com americanismos e regionalismos.

Por fim, este romance é, na minha opinião, a confirmação de Joel Neto enquanto autor, pois, para além do que já foi referido, Arquipélago está maravilhosamente bem escrito, bem pensado e bem estruturado. A escrita é singela, mistura partes carregadas de mistério, de ações comezinhas, de dia-a-dia de gente simples, arreigada ao seu espaço, às suas tradições e aos seus ideais, com outras mais intimistas, do foro mais privado, que nos falam de culpa, de ódio, de ressentimento, de recordações, de apaziguamentos, de amizades e de amores – de pai e filho, de neto e avô, de homem e mulher, de irmãos. Dei frequentemente comigo a sorrir, a sofrer, a ansiar por respostas, a mostrar estupefação perante mais uma reviravolta que adiava a resolução dos mistérios que apimentam a narrativa e sobretudo a partilhar com José Artur das saudades de uma infância na companhia dos avós, aquela que considero a mais memorável de todas.

Ora tudo isto é mais do que suficiente para afirmar que Joel Neto criou uma das melhores obras que li nos últimos tempos e que me vai obrigar a querer ler o que publicou e que publicará – a começar pela sua última publicação – A vida no campo.

Recomendadíssimo! Sem dúvidas!
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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