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sábado, 29 de junho de 2019

Da Califórnia de João Bendito - OS MARES NÃO SÃO TODOS IGUAIS



OS MARES NÃO SÃO TODOS IGUAIS

Ti João Miguel inquietava-se para acartar a corcunda. Não sei se terá nascido com ela ou se terá sido produto de algum mau jeito. Baixinho de físico, era metade do tamanho do filho mais velho, o Casimiro.

Foi um dos grandes marinheiros do porto da Calheta, em Santa Cruz da Graciosa. Quando se encontravam todos, em tarde de sábado, sentados nos degraus do armazém do Senhor Eurico, mesmo de frente para o varadouro, era rara a altura em que não falassem do mar... 

E ai João Miguel pontificava. Tinha direito a isso, foram muitos anos a navegar, a pescar e a arriar à baleia. Sabia as horas das marés sem consultar tabelas ou ter de ouvir o noticiário do Rádio Clube de Angra. Sabia manobrar a “Manú” – nome de morena sereia - , a lancha que trazia os passageiros e rebocava os batelões na recolha  das cargas dos navios da Insulana e que, depois, seguiam de volta até à borda dos negros monstros a abarrotar de vacas e bezerros a caminho dos matadores do Continente. E sabia, o Ti João Miguel,  aconselhar os outros. Dizia-lhes, na sua voz suave mas firme, que não fossem para o mar quando não deviam... “Não está de feição. Vai-se levantar temporal de certeza, o vento está muito fresco”. 

Eram homens às direitas. Nunca ouvi de se desentenderem em zaragatas. O Mestre Tomás da Luz, o Gabriel Rato, mesmo o Casimiro, todos tinham os seus barcos, as suas companhas e os seus pesqueiros preferidos. Mas respeitavam-se, sabiam que aquele mar é que lhes matava a fome e ele, o mar, era grande bastante, havia lugar para todos.

As memórias que tenho destes pescadores já remontam a mais de cinquenta anos. O facto de nunca me ter esquecido deles só mostra que eram gente discreta e honesta, embora só convivesse com eles nas férias de verão. Mas tenho saudades deles, tenho saudades de ouvir o Gabriel Rato, com o seu olho vivo, a descrever como trancara a maior baleia desse ano, de ver o gigante Casimiro, de pé descalço, com o Casimirinho pela mão, em direção ao cais para ir aparelhar o seu barco e sinto até a falta de ouvir o vozeirão do Aluízio, o mais arrevesado deles todos, a gritar com o filho mais novo, o “Maracoto”, quando o mandava à venda do João de Deus comprar anzóis e o rapaz se entretinha pelo caminho a fazer das suas.

Mas, acima de tudo, tenho saudades daquele mar.

Foi o mar que conheci melhor, o do porto da Calheta. Vi-o manso como um cordeiro, bonacheirão e malandro. Vi-o malcriado e abandalhado a enxovalhar a baía, com ondas alterosas que cobriam o Cais do Barril e respingavam espuma babosa até às muralhas do Forte do Adro Santo. E vi-o, dolente mas acolhedor, cruzado e rasgado pelas quilhas dos iates do Pico, das traineiras do atum e das rápidas “gasolinas” e botes baleeiros.

Era amigo, aquele mar. Deixava que a Esmeralda Cambrinhas se abeirasse dele para lhe roubar os caranguejos das poças do Boqueirão, enquanto o marido enchia o camaroeiro de algas e sargaço que, depois, estendia a secar por sobre os muros e ladrilhos da Rua do Mar; Permitia, nas noites de lua cheia, as renhidas disputas entre o Ruben “Bala” e o Manuel Maria, a ver qual apanhava a maior moreia, na ponta do Cais Grande; E ficava todo babado, a ouvir a filarmónica da Vila, ao ritmo da pancadaria do bombo do Leonildo, em dia de chegada de autoridades de fora. Até piscava o olho, maroto, ao minúsculo Dr. Castelão, que, naqueles dias, subia ao alto da sua pequenez e se julgava do tamanho dos outros todos.

Cheirava bem, aquele mar. Os odores das cestas cheias de peras e uvas, cobertas com toalhas coloridas, a serem arremessadas para bordo do pequenino “Fernão de Magalhães”, os perfumes das meloas, os cheiros velados das pipas de vinho branco e das caixas de aguardente da Adega, tudo misturado com a ressalga, atenuavam a dor das despedidas e adocicavam os abraços nos regressos. 

Foram estas coisas todas que nunca encontrei noutros mares. Ouvi Ti João Miguel, num daqueles dias em que ia ajudar o seu compadre Nelson a servir ao balcão do Café do “Rato”, comentar com um emigrante que se queixava das asperezas do mar de “Betefete”: “Os mares são como os homens, são todos diferentes”. É verdade, sim senhor. Mesmo nas nossas Ilhas de Bruma, os mares não são constantes. O do Biscoitos ou das Quatro Ribeiras é mais arrebitado e mais bravo que um toiro; O mar dos Capelinhos é mais explosivo, negro e inconstante; E, nas costas do Corvo, o mar é solitário, desconfiado e matreiro.

Aportei a várias das “Ilhas Kanecas” e por lá também nunca vi dois mares iguais. É assustador nas costas de Waimea, com ondas mais altas que montanhas mas lânguido e preguiçoso nas praias de Maui. Sabe a enxofre e lava viva nos calhaus da Big Island mas é brejeiro e sujo nas arreias de Waikiki. E então no México, são bem flagrantes as diferenças entre os mares do Pacifico – mexilhões e agrestes – e os do Atlântico, quentes, ensolarados e marisqueiros.

Ao fim e ao cabo, começo a desconfiar que não serei capaz de distinguir se serão os mares que fazem as pessoas ou se serão as pessoas que fazem os mares. Mas lá que são diferentes, de lugar para lugar, lá isso são. Tanto uns como as outras.

Não terei a sorte de, algum dia, poder voltar ao porto da Calheta, na Graciosa. E talvez seja melhor assim, sei que ia sentir a falta das caras e das vozes dos meus amigos pescadores e baleeiros. 

E será melhor também porque tenho medo de já não encontrar o mesmo mar, os mesmos cheiros e o sal de outros tempos. Diria mesmo que, porventura, até a alma desse mar terá mudado.

Para confirmar, vai ser melhor perguntar aos meus amigos poetas... Será que o mar tem ALMA? Será que, mesmo apesar das suas diferenças intrínsecas, o mar e os humanos se completam?

Parece-me bem que sim. Pelo menos um deles, o jorgense Artur Goulart, assim descreve a sua afinidade com o mar:

“... em terra bem me procuro
só me conheço no mar”.

Ou como muito bem rematou Marcolino Candeias a sua “Rota de Ítaca”,

“E se no fim faltar cais para a chegada
o mar também é terra onde morar.”

Lincoln, Ca. Março, 23, 2016
João Bendito
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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