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quinta-feira, 18 de julho de 2019

Do catedrático das letras Dr. Carlos Reis - Entrevista ao jornal Público (2)


CONTINUAÇÃO 

"O acordo ortográfico foi excessivamente dramatizado em Portugal"
ALBERTO FRIAS

E com o português? As pessoas resistem a reconhecer que no domínio em que se trabalha a língua, a lexicografia, o domínio dos dicionários, o Brasil tem uma história incomparavelmente mais rica do que a nossa. O dicionário da nossa Academia só apareceu há meia dúzia de anos, sendo que o antigo, o do século XVIII, só se publicou um volume e nunca se completou. Era o volume referente à letra A, que terminava na palavra azurrar. Acabou por ser objecto de tantas críticas - dizia-se que o dicionário tinha ficado 'a zurrar', que numa edição seguinte teve de inventar-se uma palavra, azuverte. Em Espanha, existe uma ligação muito estreita entre a Real Academia e as suas congéneres sul-americanas, com muitas acções conjuntas. Isto dá um grande poder unificador ao espanhol, que apenas conhece variantes ortográficas, que estão dicionarizadas. Neste aspecto as nossas fragilidades são grandes e o acordo ortográfico é indispensável do ponto de vista de política de língua, por muitas reservas que se coloquem e eu próprio coloco algumas de ordem técnica.

UMA ALIANÇA COM ESPANHA
Defende as alianças estratégicas. Está a pensar em Espanha?Penso sobretudo no domínio universitário, nos departamentos em que se ensina português e espanhol e nas mais valias que se podem retirar de presença conjunta, dada a relativa afinidade dos dois idiomas. Isto é, é possível mostrar aos estrangeiros que quem aprende português, com alguma facilidade aprende também o espanhol e vice-versa. É muito prático. E porque não recorrer a economias de escala, alianças concretas que têm a ver com recursos, espaços, administrativos? E que poderiam permitir aprender alguma coisa do que se faz no Instituto Cervantes.

Porquê? Dou um exemplo. O presidente do patronato do Cervantes são os reis de Espanha e dele faz parte também o primeiro-ministro. Todos os anos, a abertura solene é presidida pelos reis. Onde vemos isto aqui? O Prémio Cervantes tem uma repercussão considerável no mundo da língua espanhola, mas o nosso Prémio Camões só sai no rodapé das televisões e, no Brasil, é praticamente ignorado. Não há uma intervenção simbólica ao nível da mais alta magistratura da nação ou do Governo, que sublinhe a importância agregadora do Prémio, porque é essa a importância que ele tem. É preciso fazer sobre isto um trabalho político consciente, empenhado, com imaginação.

OS FALHANÇOS DA POLÍTICA
Faltou-nos sempre uma política da língua? Sim, e com continuidade. Há que encontrar almofadas de protecção que protejam as políticas da língua das mudanças de Governo e até de ministro! Para não se começar tudo de princípio de cada vez que muda o Governo. Porque se a política de língua é reconhecida como um desígnio nacional, não pode estar sujeita às oscilações e humores dos ministros.

Mas ainda não é reconhecida como tal... Pode ser dita como tal, mas não há acções concretas que a reconheçam. Há lacunas e falhanços, a começar pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa, no âmbito da CPLP, por boas ou más razões. Estas questões são sempre um pouco melindrosas, mas não sei se não teria sido necessário escolher para sede daquele instituto, com todo o respeito por Cabo Verde, uma visibilidade mais efectiva, uma capacidade de intervenção, e até no plano doutrinário, mais efectiva.

Está a falar de um outro país? 

Porventura.
Portugal, Brasil? 

Porventura. É claro que isto tem melindres de outra natureza, mas temos de decidir se queremos fazer uma política da língua a sério, ou não.

A TAREFA É DE TODOS
Portugal consegue fazer uma política da língua sozinho? Não, de todo. Se Portugal não trabalhar para trazer para esta causa os outros países, está condenada ao fracasso.

Tirando o Brasil, os outros países estão interessados? Nem o acordo ortográfico foi adoptado por todos... Mas vai ser, há manifestações claras nesse sentido. Isso é outra coisa. Voltemos um pouco atrás, comparando com o caso espanhol, por exemplo. Quando é que se deu a descolonização de Espanha? 1898. No fim do século XIX, a Espanha, bem ou mal, tinha resolvido o seu problema colonial. Nós vivemos uma descolonização tardia e é natural que países como a Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Angola - que esteve em guerra durante mais de 40 anos - só agora comecem a dispor de instrumentos de intervenção no domínio da língua que demoram décadas a construir: universidades, academias, centros de pesquisa, académicos qualificados. É natural que seja assim. Têm outras prioridades e outras limitações, muitas das quais foram deixadas por nós, de resto.

Têm outras prioridades mas, agora, que despertam para o assunto, colocam problemas, nomeadamente quanto às ortografias, não? Há essa questão. Pode dizer-se, de forma redutora, que nós em escrevíamos respeitando mais a etimologia das palavras, enquanto no Brasil se foi derivando para a forma como as palavras são ditas. É evidente que nos países africanos há injunções locais, cenários dialectais e linguísticos muitíssimo complexos, que podem levar a esses problemas de 'singularidades'. Mas eu lembro a opção clara de um grande líder africano, Amílcar Cabral, que fez da língua portuguesa a língua oficial, reconhecendo que, sendo o português a língua do colonizador, não era necessariamente uma língua colonizadora. Era um factor de unificação nacional, como aconteceu no Brasil e acontece em Moçambique e Angola, que sendo países muito grandes e de cenários complexos, o português funciona como língua veicular, permitindo que as pessoas se entendam. Nesses países, o português como língua materna subiu muito nos últimos 20-30 anos. Quando se esperava que ia desaparecer, confirmou-se a tese de Amílcar Cabral.
E quanto à política da língua? Há uma contradição que tem de se saber resolver. Por um lado, diz-se que queremos uma comunidade muito alargada, chamada lusófona (um termo que embirro pela sua excessiva ligação à matriz portuguesa), que seja unificada por um idioma comum, falado por 200 ou 230 milhões de falantes. Mas, por outro lado, queremos valorizar as singularidades locais, a criatividade lexical e a riqueza linguística local. Mas a notícia, boa ou má, é que não podemos ter tudo. Se queremos um universo linguístico sólido, consistente e coeso, que não temos por agora, então temos de reconhecer essa qualidade ao português.

CONTINUA
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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