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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O oitavo encontro


Uma das figuras castiças do Corpo Santo, o Fifi das Flores. Tinha prometido à Jaqueline que, nesta quarta-feira, falaríamos do Fifi das Flores. 
Dentro deste contexto, achei por bem trazer para a mesa da nossa conversa um texto que, sobre a figura em questão, foi escrito pelo meu querido amigo João Bendito, residente na Califórnia.

“Nunca vim a saber ao certo como se chamava. Já li de o chamarem António e até de José. O nome de família também não sei. Essa coisa de nomes de família não se ajusta a gente simples. E o Fifi era pessoa simples. Simples de mais, era Fifi das Flores e pronto.

Vi-a o passar, sempre meio distraído, costas vergadas, andrajoso e descuidado, pelas ruas da cidade. Os óculos eram mais fortes que vidros de garrafa, nos pés umas sandálias já muito velhas e rebentadas. Por cima dos ombros, sem vestir as mangas, usava uma “suera” de malha grossa e colorida que alguém lhe mandara da América. Agora que penso nisso, não me lembro se usava chapéu ou barrete. Mas lembro-me que as calças, assim como o ocasional casaco, poderiam aguentar-se sozinhas em pé, de sebosas.

Era mestre a confeccionar flores. Colectava pedaços de chitas, sedas, meias de vidro velhas e outros tecidos coloridos. Com uns arames, conseguia armar bouquets vistosos, que vendia às senhoras das freguesias. Eram muito úteis para enfeitar os santinhos, nos oratórios caseiros. E deixaram-lhe a alcunha que o acompanhou toda a vida.

Vivia ali no Corpo Santo, em casa de uma irmã, na Rua do Cardoso, em frente à sede do Marítimo. Duas casas mais acima, a vizinha Lurdes do Pico, vidente e curandeira de alta fama, era a sua companheira de conversas e de orações. Fifi deve ter aprendido algumas das artes ocultas, os seus serviços criaram nome e foram até requisitados por um treinador continental que veio para o “Lusitânia”. Fifi esteve incumbido, naquela época, de ir benzer os balneários e os equipamentos dos lagartos de Angra, desesperados por vitórias no campeonato. Nunca soube se as mesuras resultaram, as que ele ajudava a Lurdes do Pico essas sim, devem ter sortido bons proveitos porque a casa estava sempre num frenesim de gente a entrar e a sair.

Ali mesmo, na Rua do Cardoso, a casa da Tia Angelina “Segura” era também ponto de muito movimento. Nas tardes de Verão as netas da respeitável anciã reuniam-se nas brincadeiras próprias de crianças em idade escolar. Passeavam, rua abaixo, rua acima, os toscos carrinhos de bonecas que tio Tibério tinha construído com umas sobras de madeira e corriam, desalmadas, a brincar ao esconder. Santa altura em que as crianças podiam ainda brincar na rua sem o susto de movimento de carros ou de outros perigos!

Sentadas na soleira da porta, a Luisinha, a Armanda e a Maria Alice, desta vez entretidas com o jogo do anel, quase que nem davam pela passagem do Fifi. No pequeno largo junto do Império da Caridade, meia dúzia de rapazes já se tinham metido com ele, a caçoar com a indumentária e com o raminho das flores que não tinha conseguido vender. Maria Alice, a mais aventureira das três primas, aproveitou a embalagem da risota dos rapazes e pôs-se a desafiar o Fifi.

Pobre pequena, não estava à espera da resposta do transeunte, não foi lesta bastante para fugir quando o Fifi correu atrás dela e a segurou por um braço. Levou-a de volta à porta da casa da avó Angelina e, sem maldade (o Fifi não fazia mal a uma mosca), amarrou-lhe as compridas tranças ao picaporte. “Agora grita pela tua avó para que te venha desprender!”, disse-lhe o Fifi, já caminhando em direção à casa da Lurdes do Pico.

Uma coisa é certa, a menina nunca mais se esqueceu do incidente. Tinha até pesadelos que a despertavam, a meio da noite, assustada. Chegou a tentar convencer a mãe para lhe cortar as tranças, não fosse o Fifi tornar a repetir a brincadeira.

Pobre Fifi. Acabou por ter um fim triste, como triste deve ter sido toda a sua vida. Já idoso e doente, recusava o internamento em casas de assistência social, preferia a liberdade de andar pelas ruas e dormir onde calhava e bem lhe apetecia. Encontraram-no morto numa pequena dependência da velha Praça de Touros de São João.

No regaço, trazia um ramo das suas artísticas flores” 

A Jaqueline adorou esta história relacionada com o Fifi das Flores, de nome José. Acrescentei que também naquele tempo era eu um dos rapazinhos que brincava com o Fifi das Flores que morava em frente à sede do Marítimo com a sua mãe e um irmão. E ainda adiantei que o Fifi das Flores era algumas vezes chamado pelo treinador do Lusitânia Mário Nunes para benzer os equipamentos do respectivo jogo. E ele ia para receber uns troquinhos. Nessa altura, óbvio, já era adulto e era um dos adjuntos do Mário Nunes.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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