Garrafa a girar por um beijo
A mesada, a existir, destinava-se exclusivamente
aos betinhos com os pais endinheirados. Na escola, levámos galhetas constantes dos
mais velhos/maiores e ninguém imaginava o que viria a ser o bullying.
Os nossos passatempos não eram, de todo,
virtuais. A realidade das brincadeiras afirmava-se em plena rua, a céu aberto,
com bom e mau tempo.
Jogávamos à bola que bem poderia ser de
borracha, plástico, sacos de leite enchidos com papel e meias velhas. Os postes
das balizas eram pedras, camisolas e a barra desenhava-se na imaginação dos
jogadores, em geral, e tamanho do guarda-redes, em particular.
Mesmo sendo juiz em causa própria, afirmo em
nome da honra coletiva: não éramos miúdos mimados e amaricados.
Brincávamos com canivetes, piões de madeira,
pedras e berlindes (abafadores e tudo). Caçávamos melros, dávamos cabo dos
rabos das lagartixas, das asas das moscas para servirem de pitéu às aranhas.
O cubo mágico e o Monopólio constituíam os
passatempos mais sofisticados, vá lá. Os brinquedos rareavam, mas também
puxavam pela imaginação.
Nadávamos às escondidas da vigilância
maternal. Os cães seguiam-nos para todo o lado e íamos, a pé, para a escola
sozinhos ou, no limite, na companhia dos nossos colegas.
Usávamos roupa velha, de marca indecifrável,
sapatos e sapatilhas gastos e nunca receámos arranhões e nódoas negras no
corpo.
Um pirolito, acompanhado por um saco de
batatas fritas, enchia as medidas do estômago.
Depois de esgotados os prazeres das
brincadeiras só com rapazes, chegou a inevitável altura de alinharmos com as
raparigas.
Os preâmbulos do engate decorriam em
território escolar. Depois, era necessário aprofundar os contactos.
Haviam bailes de garagem, começaram a
proliferar discotecas e um slow permitia fixar no tempo a felicidade de dançar
com uma miúda gira.
Porém, o mais engraçado, era o denominado jogo
da garrafa onde os deuses da fortuna, caso atuassem pelo nosso lado, permitiam
sermos contemplados com um beijo na boca de uma rapariga.
A garrafa girava, os corações saltavam, os
rostos ruborizavam e passámos a adolescência nisso. Bem vistas as coisas, nem
temos nada a reclamar…
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