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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Da Califórnia de João Bendito


AMIZADE À DISTÂNCIA (As técnicas dos garage-sale)
Tenho um amigo que só encontrei pessoalmente uma vez.
Apareceu-me uma mensagem no meu email, isto já há uns dois anos e eu fiquei desconfiado se não seria mais uma daquelas que nos chegam
automaticamente, criadas pelos computadores de vendedores de banha de cobra ou coisas parecidas. Eu não reconheci o nome do remetente mas mesmo assim resolvi ler. E não me arrependi.
O Sr. J.V. começava, com delicadeza, por pedir desculpa pelo atrevimento mas que já há tempos que me queria dizer que era leitor das crónicas que vou publicando no “Tribuna” e que gostava de saber como poderia adquirir um exemplar do livro “A Loja do Ti Bailhão”, que eu escrevera com a ajuda do meu irmão Jorge.
Feitas as iniciais apresentações e trocados uns cumprimentos um tanto ou quanto formais, fomos criando mais à vontade e continuámos a permuta de mensagens muito regularmente. Acontece que o J.V. (o “senhor” deixou de existir no nosso vocabulário) tinha vivido, quando chegou à Califórnia com 13 anos de idade, aqui perto de onde eu vivo e ainda por aqui andam alguns familiares. Agora também já reformado, vive no sul do Estado, depois de uma brilhante carreira como professor e administrador escolar.
Falamos de tudo... de onde viemos, o que fizemos na nossa juventude, das nossas famílias e das nossas vivências com os netos, de cultura, do que lemos ou ouvimos, de política – este DDT tira-nos anos de vida! – e, disfarçadamente, até damos uns cortes na casaca de algum mortal. Somos humanos, ao fim e ao cabo. Por costume, quando tenho um texto a sair do forno, envio-o primeiro ao J.V. e ele, passados dias, responde-me quase sempre a comparar as coisas que eu descrevi com episódios da sua vida. Em resumo, o J.V. vai também “escrevendo” as suas crónicas e eu sou o seu único leitor. Infelizmente.
Já aprendi muito com ele. Fiquei a conhecer nomes de brincadeiras e jogos que animavam a rapaziada da freguesia de onde ele veio, descobri episódios e peripécias dos primeiros tempos da imigração da família dele, as vicissitudes da chegada a terra estranha acrescentada com a assimilação de nova cultura e, invariavelmente, chegamos à conclusão que temos muitas coisas em comum, quase que umas vidas paralelas com muitos pontos de sintonia e semelhança.
Como disse acima, só nos encontrámos, de cara a cara, durante um pequeno “mata-bicho” (de pura água, imagine-se!) aquando da visita que o J.V. e a simpática esposa fizeram a um familiar na cidade da sua juventude. Para quem como eu, que tenho, aqui à volta, tantos amigos que se podem contar pelos dedos de uma mão, foi muito gratificante este pequeno encontro e deixámos no ar a promessa de que haveríamos de fazer um esforço no sentido de nos encontrarmos com mais tempo e com maior frequência.
Entretanto vamos continuando com a nossa amizade à distância e com o vaivém de estórias e ideias através dos emails.
Numa destas últimas mensagens falámos de garage-sales. É verdade, dedicámos uns parágrafos a este processo de vendas que é um ícone, um símbolo da cultura americana como o são o basebol e o empadão de maçã. Eu referia-me que estava a preparar uma série de trastes, bugigangas e velharias para pôr à venda no saldo que a associação de moradores organiza duas vezes por ano. Os interessados abrem as suas garagens no dia aprazado e experimentam vender aquilo que já não querem, baseados na antiga ideia que o lixo de uns pode ser o tesouro de outros. Já participei o ano passado e não me saí mal, ganhei uns trocos que pagaram uns jantares nas férias em Kawaii. Este ano tinha um conjunto de mobília de quintal que estava a ficar velha e enferrujada e pensei pôr tudo pela porta-fora. E voltei a ter sorte, logo pela manhã foi das primeiras coisas que vendi e não fiz prolongar muito o saldo, quando vi que os clientes já estavam a franzir o nariz ao resto do material que eu ainda tinha em exposição, fechei a tasca e o que não foi vendido foi doado a uma organização que angaria fundos para proteger animais abandonados.
Ora o meu amigo J.V. aproveitou para me falar de uma experiência semelhante mas em que ele não tinha sido muito afortunado. Não vendeu quase nada, teve uma trabalheira a expor os seus trastes e as pessoas nem um dólar davam por coisas que valiam muito mais. Ainda por cima, diz ele, um casal de “melros”, quando o apanhou distraído, roubou-lhe uns frascos de perfume que a esposa tinha para venda. Não há mais garage-sale na casa do J.V.!
Agora estou a preparar uma mensagem para dizer ao meu amigo que, até certo ponto, os garage-sales já estão a perder clientela com a competição proveniente da abundância de sites na internet onde as pessoas vendem e trocam produtos. São tipo de garage-sales virtuais e até com muito mais alcance porque os tarecos podem ser vistos e admirados por milhares de pessoas. Já usei um desses sites de permuta, desenhado e frequentado por gentes das cidades aqui à volta. Claro que há que ter cuidados acrescidos, não vá algum bandalho aproveitar-se para fazer uma desfeita ou causar problemas.
Já estou a imaginar a resposta que vou receber do J.V. Ele vai dizer-me que nem assim se aventura a pôr à venda mais nada, já não tem pachorra para se incomodar. Mas ao menos a minha ideia e desafio (para que ele se informe sobre essa possibilidade) vai servir para mais uma troca de mensagens e manter viva esta amizade à distância.
Ganhamos pouco com estes saldos mas pelo menos mantemos umas conversas discretas.
Prometo, J.V., que vou guardar uns dólares da minha última venda para comprar um bom tinto para a gente se consolar, no nosso próximo encontro.
O “mata-bicho” poderá acabar mas conversa não vai faltar.
Até breve.
Lincoln, Ca. Maio 5, 2017

João Bendito.
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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