AMIZADE À DISTÂNCIA (As técnicas dos garage-sale)
Tenho um
amigo que só encontrei pessoalmente uma vez.
Apareceu-me
uma mensagem no meu email, isto já há uns dois anos e eu fiquei desconfiado se
não seria mais uma daquelas que nos chegam
automaticamente, criadas pelos
computadores de vendedores de banha de cobra ou coisas parecidas. Eu não
reconheci o nome do remetente mas mesmo assim resolvi ler. E não me arrependi.
O Sr. J.V.
começava, com delicadeza, por pedir desculpa pelo atrevimento mas que já há
tempos que me queria dizer que era leitor das crónicas que vou publicando no
“Tribuna” e que gostava de saber como poderia adquirir um exemplar do livro “A
Loja do Ti Bailhão”, que eu escrevera com a ajuda do meu irmão Jorge.
Feitas as
iniciais apresentações e trocados uns cumprimentos um tanto ou quanto formais,
fomos criando mais à vontade e continuámos a permuta de mensagens muito
regularmente. Acontece que o J.V. (o “senhor” deixou de existir no nosso
vocabulário) tinha vivido, quando chegou à Califórnia com 13 anos de idade,
aqui perto de onde eu vivo e ainda por aqui andam alguns familiares. Agora
também já reformado, vive no sul do Estado, depois de uma brilhante carreira
como professor e administrador escolar.
Falamos de
tudo... de onde viemos, o que fizemos na nossa juventude, das nossas famílias e
das nossas vivências com os netos, de cultura, do que lemos ou ouvimos, de
política – este DDT tira-nos anos de vida! – e, disfarçadamente, até damos uns
cortes na casaca de algum mortal. Somos humanos, ao fim e ao cabo. Por costume,
quando tenho um texto a sair do forno, envio-o primeiro ao J.V. e ele, passados
dias, responde-me quase sempre a comparar as coisas que eu descrevi com
episódios da sua vida. Em resumo, o J.V. vai também “escrevendo” as suas
crónicas e eu sou o seu único leitor. Infelizmente.
Já aprendi
muito com ele. Fiquei a conhecer nomes de brincadeiras e jogos que animavam a
rapaziada da freguesia de onde ele veio, descobri episódios e peripécias dos
primeiros tempos da imigração da família dele, as vicissitudes da chegada a
terra estranha acrescentada com a assimilação de nova cultura e,
invariavelmente, chegamos à conclusão que temos muitas coisas em comum, quase
que umas vidas paralelas com muitos pontos de sintonia e semelhança.
Como disse
acima, só nos encontrámos, de cara a cara, durante um pequeno “mata-bicho” (de
pura água, imagine-se!) aquando da visita que o J.V. e a simpática esposa
fizeram a um familiar na cidade da sua juventude. Para quem como eu, que tenho,
aqui à volta, tantos amigos que se podem contar pelos dedos de uma mão, foi
muito gratificante este pequeno encontro e deixámos no ar a promessa de que
haveríamos de fazer um esforço no sentido de nos encontrarmos com mais tempo e
com maior frequência.
Entretanto
vamos continuando com a nossa amizade à distância e com o vaivém de estórias e
ideias através dos emails.
Numa
destas últimas mensagens falámos de garage-sales. É verdade, dedicámos uns
parágrafos a este processo de vendas que é um ícone, um símbolo da cultura
americana como o são o basebol e o empadão de maçã. Eu referia-me que estava a
preparar uma série de trastes, bugigangas e velharias para pôr à venda no saldo
que a associação de moradores organiza duas vezes por ano. Os interessados
abrem as suas garagens no dia aprazado e experimentam vender aquilo que já não
querem, baseados na antiga ideia que o lixo de uns pode ser o tesouro de
outros. Já participei o ano passado e não me saí mal, ganhei uns trocos que
pagaram uns jantares nas férias em Kawaii. Este ano tinha um conjunto de
mobília de quintal que estava a ficar velha e enferrujada e pensei pôr tudo
pela porta-fora. E voltei a ter sorte, logo pela manhã foi das primeiras coisas
que vendi e não fiz prolongar muito o saldo, quando vi que os clientes já
estavam a franzir o nariz ao resto do material que eu ainda tinha em exposição,
fechei a tasca e o que não foi vendido foi doado a uma organização que angaria
fundos para proteger animais abandonados.
Ora o meu
amigo J.V. aproveitou para me falar de uma experiência semelhante mas em que
ele não tinha sido muito afortunado. Não vendeu quase nada, teve uma
trabalheira a expor os seus trastes e as pessoas nem um dólar davam por coisas
que valiam muito mais. Ainda por cima, diz ele, um casal de “melros”, quando o
apanhou distraído, roubou-lhe uns frascos de perfume que a esposa tinha para
venda. Não há mais garage-sale na casa do J.V.!
Agora
estou a preparar uma mensagem para dizer ao meu amigo que, até certo ponto, os
garage-sales já estão a perder clientela com a competição proveniente da
abundância de sites na internet onde as pessoas vendem e trocam produtos. São
tipo de garage-sales virtuais e até com muito mais alcance porque os tarecos
podem ser vistos e admirados por milhares de pessoas. Já usei um desses sites
de permuta, desenhado e frequentado por gentes das cidades aqui à volta. Claro
que há que ter cuidados acrescidos, não vá algum bandalho aproveitar-se para
fazer uma desfeita ou causar problemas.
Já estou a
imaginar a resposta que vou receber do J.V. Ele vai dizer-me que nem assim se
aventura a pôr à venda mais nada, já não tem pachorra para se incomodar. Mas ao
menos a minha ideia e desafio (para que ele se informe sobre essa
possibilidade) vai servir para mais uma troca de mensagens e manter viva esta
amizade à distância.
Ganhamos
pouco com estes saldos mas pelo menos mantemos umas conversas discretas.
Prometo,
J.V., que vou guardar uns dólares da minha última venda para comprar um bom
tinto para a gente se consolar, no nosso próximo encontro.
O
“mata-bicho” poderá acabar mas conversa não vai faltar.
Até breve.
Lincoln,
Ca. Maio 5, 2017
João
Bendito.
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