UMA VISITA
AO SÓTÃO
A portinha
ficava no alto do teto do corredor, uns dois metros ao lado da claraboia.
Para lá
chegar era preciso ir ao quintal e trazer a tosca escada feita com dois
raquíticos troncos de criptoméria, unidos com meia dúzia de enodoados degraus.
Desviava-se um pouco para o lado a pesada arca de madeira revestida com pele de
vaca (vinda do Brasil, identificada no topo com o JMB desenhado a pregos
amarelados, de cabeça grande) e, com cuidado, começava-se a aventura.
Lá dentro,
as teias de aranha espreguiçavam-se de tirante para tirante, de barrote para
barrote. Havia que caminhar com cuidado, apertar bem os olhos para conseguir,
no meio da escuridão, ver onde se punha os pés e evitar as caganitas dos
murganhos. O pó, adormecido por anos de sossego, enervava-se e subia no ar,
deixava lastro nas narinas e irritava os pulmões.
A tosse
ainda fazia levantar mais pó. A rouquidão, apertada entre os dedos da mão em
concha sobre a boca, era o único ruído perceptível. Memórias silenciosas são
mais valiosas do que as sonoras, não dizem asneiras nem voluntariam opiniões.
Se não
fosse a presença ali, a um canto, de umas dúzias de garrafas de bebidas finas,
poderia imaginar que estava num cemitério, dentro de algum sarcófago milenário.
As garrafas, disse-nos a Mãe, foram remetidas para aquele depósito quando o Pai
se viu confrontado, na sua Loja, com uma estúpida e desnecessária lei que
exigia novos impostos sobre licores velhos. Preferiu esconde-las, retira-las
das prateleiras e enterra-las no pó do sótão. Não as venderia, seriam abertas,
uma a uma, nas noites da Consoada ou noutras festas familiares. “Por alma dos
nossos”, como ele gostava tanto de dizer.
O sótão
recolhia as recordações dos “nossos”. Não eram todas as memórias, muitas delas
estavam espalhadas pelas paredes da casa, emolduradas em caixilhos de verniz
negro. Outras – os santinhos, as pequenas peças de porcelana ou cristal –
enfeitavam o oratório ou sentavam-se, a ver passar a vida da casa, nos naperons
de renda e frioleira. O que se arrumava no sótão eram os grande quadros com
fotografias de entes descoloridos e já quase desconhecidos, aqueles que só o
Pai ou a Mãe é que eram capazes de recordar os nomes e os parentescos. A
tonalidade sépia das suas faces, o negro dos vestuários e dos bigodes
retorcidos não lhe davam nenhum ar de vida. Coitados, nem mesmo a intensidade
das meninas-dos-olhos, a olhar-me de cara a cara, conseguia trazê-los à
realidade. Estavam ali, mortos e sepultados, encostados às grandes latas
redondas de folha da Flandres cheias de flores secas e fitas já incolores que
lhes haviam decorado as verdadeiras sepulturas. Retirados do Cemitério de Cima
para darem lugar a outros mortos e a outras flores, descansavam no sótão, só
iluminados por alguma nesga de difusa luz que conseguia furar por entre as
tábuas do forro.
Mais nada
de importante havia naquele sótão. Talvez uma cadeira já esburacada pelo
caruncho ou coxa de uma perna, algum candeeiro com lantejoulas verdes ou uma
saca de serapilheira com roupas velhas. Nada que não pudesse ter ido para outro
lugar não fora a queda da Mãe para guardar tudo. “Um dia pode ser preciso”.
Sou um
pouco assim, como a minha Mãe. Guardo tudo, nunca me desfaço de nada. Porque,
como ela dizia, pode vir a ser preciso ou também para manter amarrada a ligação
ao passado. As cordas das memórias precisam de quem as mantenha bem
desenriçadas, de preferência sem nós.
Tenho
ferramentas que já não uso há anos. Há por aqui tralhas e utensílios
ultrapassados e que já nem sei para que servem; máquinas, aparelhos
electrónicos disto e daquilo que possivelmente nem funcionam. Mas guardo também
coisas que nem por sonhos penso desfazer-me delas: livros aos montes, revistas
quantas queira, toneladas de fotografias em álbuns e em caixas. E outras coisas
mais, recordações de lugares e de pessoas, ofertas de familiares ou de amigos,
tolices que só para mim têm algum significado. Farto-me de ouvir pela cara fora
que “metade disto tudo podia andar para o lixo que não fazia falta nenhuma”. Eu
ignoro os avisos.
Ontem subi
ao sótão, não ao da casa da Miragaia mas ao da minha casa actual. São muito
diferentes um do outro. Neste não há tanto pó, é muito mais amplo, com
iluminação elétrica e arejamento adequado. Posso andar à vontade sem perigo de
bater com a cabeça no teto e de me embrulhar nos tubos do sistema de
aquecimento. E, felizmente, não tem sujidade de murganhos nem teias de
aranha... por enquanto!
Fui em
cata de uma caixa onde, há talvez trinta anos, guardei – estão a ver a minha
mania? – uma quantidade de bonecas e outros animais empalhados que serviram de
companhia ao crescimento das minhas filhas. Com o passar do tempo, elas
foram-se dedicando a outros interesses (e a outros “bonecos”) e esta palhaçada
toda foi-se acumulando na garagem. Quando os empacotei e levei para o sótão,
ouvi outra vez a mesma reza, “Áquêle! Não sejas tolo, elas nunca mais se
lembram desses macacos!”.
Foi uma
vitória para mim quando ontem a Carla me perguntou se eu sabia onde poderia
estar um boneco, um Curious George que até dormia com ela quando tinha a idade
que a filha tem agora. Queria mostrar à Olívia o seu amigo de meninice.
O abrir da
caixa trouxe-me um aperto à garganta. Desta vez não foi por causa do pó, as
caixas estavam hermeticamente fechadas. Ao ver aqueles bonecos revi muitas
imagens de momentos passados com as minhas filhas, os passeios com os carrinhos
de bonecas, as tendas feitas com um lençol por cima de duas cadeiras, o brincar
às casinhas e a hora do adormecer com a leitura de um livro de contos, sempre com
o olhar vidrado de um destes bonecos a vigiar por de baixo do cobertor.
Quase
todos são figuras e animaizinhos sem importância, comprados a tuta-e-meia nas
lojas de brinquedos. Mas uns poucos deixaram marca – dois foram feitos por
minha Mãe para oferecer às netas americanas – e mantiveram amarrada a tal corda
das recordações. Fico feliz por os ter guardado. O único problema é que o
Curious George que a Carla gostava de rever, não estava entre os sobreviventes.
Tal pena,
resta-nos apenas a recordação dele. Quem sabe, poderá ter ficado esquecido
noutra casa onde vivemos antes.
No sótão,
de certeza...
Lincoln,
Ca. Nov.2016
João
Bendito
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