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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Roberto Carneiro um dos expoentes da intelectualidade




Continuação de um retrato de família

O dinheiro marcou especialmente a sua vida nessa fase? Como era antes e depois da morte do seu pai?

Roberto — Enquanto o pai foi vivo, vivíamos sem restrições. O meu pai conseguia trazer para casa qualquer coisa como 10 contos por mês. Era maestro titular das duas principais orquestras que actuavam na base americana das Lajes. Foi esse convite que nos fez ir para os Açores, em 1949. Com o falecimento do pai, aparecem-nos credores de todo o lado, como abutres sobre
a carcaça, e tivemos de vender património, inclusive os instrumentos do pai — saxofone, clarinete, trompete, fagote, oboé e, finalmente, o piano. Vivíamos com pouco mais de 500 escudos por mês. Os tios do pai decidiram quotizar-se para nos ajudar a sobreviver. Decorridos uns seis meses, vim a ser beneficiado com bolsas de estudo da Fundação Gulbenkian e da Junta Geral do Distrito Autónomo de Angra do Heroísmo.



Na vida do Roberto, o piano era determinante e representava, de certa maneira, o pai. A presença do piano era igualmente forte na sua vida?

Rosário — Lembro-me do piano em casa desde sempre. Segundo a história que a minha mãe contava, o meu avô mandou-o vir da Alemanha para a sua dotada filha aprender piano. O piano acompanhou os meus pais quando foram viver para a Madeira. O meu pai foi fazer as levadas.



O que é fazer as levadas?

Rosário — São os canais de águas pluviais. Concebeu toda a rede de levadas, depois das respectivas barragens, depois das centrais hidroeléctricas. Na Madeira, fazia parte da rotina da família ouvir os manos. Quando viemos para o continente, comecei a aprender. Tive aulas durante nove anos com a senhora dona Maria Campina. Eu nem sempre estudava as lições...



A música é comum à vossa vida. Tocaram juntos?

Rosário — Depois de eu já não achar esquisito o penteado, passámos a ir juntos a concertos. Tentámos tocar uma peça a quatro mãos. O Roberto foi a Paris e trouxe a partitura, a Marcha Turca de Mozart. Ao fim de três andamentos, começávamos a discutir [risos]. E acabou-se o piano.



O seu quadro era o de uma família burguesa, abastada, o que marca não só a vida de todos os dias, mas também a expectativa da vida que se vai ter. Tem uma experiência, na adolescência, oposta à do Roberto.

Rosário — Tenho. O meu pai era um quadro superior da Administração Pública, e tinham três filhos. Era abastado no sentido em que se pertencia ao grupo mais favorecido da população; só que a minha recordação de infância e de juventude não é de abastança, é de contenção.

Roberto — São os anos do pós-guerra.
Rosário — Quando viemos para o continente, fui para o Sagrado Coração de Maria, onde estive até ao 7.º ano do liceu, usando sempre uniforme. Para além do uniforme, devia ter duas fatiotas, uma das quais eram umas calças transformadas das calças dos meus irmãos. As camisolas eram desfeitas, lavada a lã e feitas outra vez.


Ainda não falaram de religião.

Roberto — A minha família era muito católica. Era a maneira de, na China, se diferenciarem. Portugueses de Xangai, portugueses de Hong Kong, todos marcados por uma fé inabalável. Tive uma formação católica muito forte, desde pequenino. Catequese, acólito, coro, idas à igreja todos os dias santos e nas grandes festas litúrgicas.



Frequentou escolas religiosas?

Roberto — Eu não. (Os nossos filhos estudaram até ao final do ensino primário no Colégio Dominicano do Bom Sucesso, em Pedrouços, sob a responsabilidade dos padres dominicanos irlandeses.

Rosário — Tinham nessa escola o inglês e a catequese integrada.)


Fale-me da marca da religião na sua vida.

Rosário — Os meus pais eram ambos católicos, alentejanos. O meu pai, um republicano convicto.

Roberto —  Com antecedentes familiares maçónicos...
Rosário — O meu pai tinha uma religiosidade própria. Ia à missa umas vezes e não ia outras. A minha mãe ia mais regularmente. A minha avó materna era intensamente religiosa. Rezava duas horas por dia num oratório lindíssimo. Mas não ia à igreja, acho que não gostava muito de padres.


Iam a que capela?

Rosário — Íamos à igreja do Campo Grande ou então à capela do Colégio Pio XII, que eram as que ficavam mais perto. Esta educação austera no colégio e esta relação particular que os meus pais tinham com a Igreja predispuseram-me muito bem para a questão religiosa. Consegui descortinar um caminho de liberdade.



Gostava que me falasse dele. Até porque, tanto quanto se sabe, a experiência do seu irmão com a fé e a igreja foi menos livre. 


Roberto — O Adelino foi Opus Dei.

Rosário — Ainda antes do Adelino: há uma aprendizagem da fé não pelo lado ritualista mas pelo lado da prática e da vivência quotidiana. As dúvidas?, todos temos. Então é preciso estudar, ler, debater. O meu irmão Adelino teve um papel muito importante. Pela profundidade do seu pensamento.


(Continua)
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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