A Roberto Carlos, por todas as canções que ele fez pra mim
Pegou a cifra, ainda feita a mão e na presença dele. Recordou, com carinho, as
tantas horas que ela ficou compenetrada feito moleca, ansiosa por achar o tom
certo da canção que fazia pra ele. Ela ia e voltava, parava numa frase, numa
melodia. Às vezes parava de cantar e dedilhava algo no violão. Olhou-a com
ternura, tentando fazer com que a carícia de suas mãos nos cabelos dela a
ajudasse a encontrar o caminho que sua inspiração queria.
A cifra permanecia ali, intacta, com todas as marcas de lápis apagado com
borracha, com algumas coisas acrescentadas a caneta de última hora. Lembrou-se
do momento em que disse que ela não precisava mais mudar, já estava lindo. Mas
ela riu. Passou a mão em suas bochechas e fez seus lábios se encontrarem aos
dele, dizendo "coisa de artista perfeccionista, meu bem".
Era tão difícil olhar os arredores do apartamento. A metade do armário vazia. A
porta do banheiro entreaberta mostrando a pia na qual não tinha mais a escova
de dente dela. Nem as calcinhas penduradas na parte de fora do box. A mesinha,
antes tomada por livros de música e canções prontas ou iniciadas em papel,
agora tinha um vazio. Mesmo quando ela falou que ia embora para nunca mais
voltar, ele decidiu não mais tocar naquela parte. Na parte que era dela. Ia
sentir-se profanando um sagrado lugar de inspiração. Ia ficar sem ela, sem os
detalhes das muitas vezes em que recebeu como primeira imagem ao acordar ela
nua, de costas para ele, mergulhada em alguma melodia. A ausência doía, mas ao
menos precisava ainda ter algo de concreto da falta dela. Caso contrário,
ficaria entregue ao abstrato sentimento de perda, e iria se remoer ainda mais
em sua amargura.
Olhou para a cabeceira. O porta-retrato estava virado para baixo. Evitava sim,
evitava, mas era como uma compulsão ver novamente ela sorrindo. Ele que não
queria vê-la triste e, para isto, deixou que ela fosse embora e o sufocasse de
saudade. Pegou o porta-retrato. Com os dedos, desenhou a silhueta dela. Mas
logo voltou para a cifra.
A música já estava acabando de tocar no rádio. Neste tempo todo, tinha
procurado, de todas as formas de fugir do sucesso dela e do sucesso da canção
que ela fez pra ele. Não adiantou. A voz delicada e a beleza em letra e melodia
saltaram aos ouvidos da mídia. Ela era a sensação do cenário musical.
Contou no relógio os três minutos e cinquenta segundos do período de duração da
música. A lágrima borrou um pouco o finzinho da cifra. Ficou constrangido mesmo
sabendo que ela não ia tomar conhecimento disto. O rádio começou a tocar um
outro sucesso capaz de grudar nos ouvidos. Desligou e tentou dormir. Mas, ao se
ver abraçado com a cifra, decidiu ligar para a emissora. Queria ouvir a canção
que ela fez pra ele novamente. Ao menos lá, no rádio, o mundo seria diferente
de tudo o que restou da ausência dela.
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