O SERROTE DO
“MIJINHA”
António
«Mijinha» era marceneiro. Talvez não fosse dos melhores mas desenrascava.
Trabalhou vários anos nas oficinas do Sr. Palhinha, ali a descer a Rua de Cima
de São Pedro, em Angra, e espalhou simpatia durante toda a sua vida.
O
«Mijinha» era primo de meu pai e nosso vizinho do pé da porta. Com a sua
companheira de toda a vida, a Belém, vivia numa casa tão pequenina que mais
parecia uma casa de bonecas. Para mais, os quartinhos ainda pareciam mais
pequenos porque estavam cheios de vasos de flores, avencas e pequenos fetos,
depositados em prateleiras de madeira, feitas com esmero e capricho pelo
António.
Dizia-se
que, quando era rapaz novo, o António era fresco para dar umas bofetadas. Não
era forte de corpo, até pelo contrário. Disfarçava a inferioridade física com a
ligeireza da corrida. Tinha o descaramento de dizer que “A primeira chapada é
sempre minha!”, quando conseguia pôr-se ao fresco depois de uma zaragata.
Eu
passava muito tempo em casa da Belém e do António, que gostavam tanto de mim e
dos meus irmãos como se fossemos os filhos que nunca tiveram. Era nessas
alturas que eu ficava enfeitiçado com a pequena caixa das ferramentas do
António. Rectangular, com uma mão a todo o comprimento e equipada, no fundo,
com uma série de divisões onde ele separava os parcos pregos – parafusos eram
coisa rara nessa altura –, a caixa da ferramenta ainda continha umas trinchas,
uma plaina, um martelo de orelhas com o cabo já bem polido pelos calos das mãos
do marceneiro e um serrote, americano de certeza, com folha luzidia e dentes
bem afiados.
O
serrote do «Mijinha» fascinava-me. Os enfeites enramados do cabo davam-lhe um
toque de classe, mostravam o gosto do operário em manter os seus apetrechos em
boas condições. Avisava-me o António para que não lhe tocasse, que aquilo não
era brinquedo. Mas eu, num dia em que ele não estava em casa, atrevi-me a
passar os dedos, ao de leve, na fina superfície dentada. E pronto, cortei um
dedo! Nada de grave, um pequeno corte que nem deixou cicatriz mas do qual nunca
mais me esqueci, principalmente porque não admiti a verdade e inventei uma
mentira para me defender. Ninguém acreditou na minha desculpa...
Serrotes
como o do «Mijinha» já só os encontro em lojas de antiguidades. Agora todos os
marceneiros e carpinteiros apenas utilizam ferramentas eléctricas ou de
baterias, exceção feita para algum serrote para trabalhos mais especializados.
Estão vários em exposição e à venda na loja de ferramentas onde trabalho mas
nenhum se parece com o que me cortou os dedos. Contudo, quando olho para eles,
recordo sempre o antigo serrote americano do António. E sabem porquê? Porque,
muitas vezes, comparo a minha vida à lâmina de um serrote, daqueles com muitos
e finos dentes, aos altos e baixos, tipo o alinhamento de cumes e vales num hipotético
mapa ou num registo de sismógrafo.
É neste
caminhar no fio da lâmina da vida (diria Francisco Cota Fagundes) que
balançamos a luta contra as adversidades com as situações de vitórias ou
conquistas. Diz também o ditado popular que quanto mais alto se sobe, maior é o
trambolhão da caída. Assim, vamos subindo e descendo, avançando, marcando passo
ou escorregando conforme os desafios que a vida nos atira à cara. Por vezes o farelo que
produzimos neste serrar dos dias é bem fino e mal se vê; mas, noutras alturas,
ele cai-nos nos olhos, mistura-se com o sal do suor e afoga-nos a garganta, de
tal modo que necessitamos pôr os pés bem fincados no chão, recuperar as forças
e o alento necessário a seguirmos viagem nesta oficina da vida.
Serrotes
há em que os dentes são todos iguais, da mesma altura e profundidade. Devem ser
os espelhos, as lâminas de quem por esta vida passa sem grandes preocupações,
numa pasmaceira dolente e simplória. Outros, talvez mais raros, mostram-nos uma
assimetria no tamanho dos dentes, nas ranhuras. Começam, na ponta, com entalhes
pequenos, iguaizinhos, simétricos; depois, conforme se vai alargando a lâmina
do serrote, as fissuras vão crescendo, em tamanho e em intensidade até chegarem
ao cabo de madeira, à mão polida e suada, segura com parafusos ou arrebites bem
apertados.
...
Sentado
no meu quintal, folheio o livro que acabei de receber no correio – Estórias
do Tempo, de José Francisco Costa – e, como por coincidência, da roseira
atrás de mim, voa uma joaninha que foi pousar mesmo no título da crónica
inicial, A Linha da Mente! Fiquei ainda mais em
sintonia com o meu amigo escritor.
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