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quinta-feira, 28 de junho de 2018

Da Califórnia de João Bendito



O SERROTE DO “MIJINHA”
António «Mijinha» era marceneiro. Talvez não fosse dos melhores mas desenrascava. Trabalhou vários anos nas oficinas do Sr. Palhinha, ali a descer a Rua de Cima de São Pedro, em Angra, e espalhou simpatia durante toda a sua vida.

O «Mijinha» era primo de meu pai e nosso vizinho do pé da porta. Com a sua companheira de toda a vida, a Belém, vivia numa casa tão pequenina que mais parecia uma casa de bonecas. Para mais, os quartinhos ainda pareciam mais pequenos porque estavam cheios de vasos de flores, avencas e pequenos fetos, depositados em prateleiras de madeira, feitas com esmero e capricho pelo António.
Dizia-se que, quando era rapaz novo, o António era fresco para dar umas bofetadas. Não era forte de corpo, até pelo contrário. Disfarçava a inferioridade física com a ligeireza da corrida. Tinha o descaramento de dizer que “A primeira chapada é sempre minha!”, quando conseguia pôr-se ao fresco depois de uma zaragata.
Eu passava muito tempo em casa da Belém e do António, que gostavam tanto de mim e dos meus irmãos como se fossemos os filhos que nunca tiveram. Era nessas alturas que eu ficava enfeitiçado com a pequena caixa das ferramentas do António. Rectangular, com uma mão a todo o comprimento e equipada, no fundo, com uma série de divisões onde ele separava os parcos pregos – parafusos eram coisa rara nessa altura –, a caixa da ferramenta ainda continha umas trinchas, uma plaina, um martelo de orelhas com o cabo já bem polido pelos calos das mãos do marceneiro e um serrote, americano de certeza, com folha luzidia e dentes bem afiados.
O serrote do «Mijinha» fascinava-me. Os enfeites enramados do cabo davam-lhe um toque de classe, mostravam o gosto do operário em manter os seus apetrechos em boas condições. Avisava-me o António para que não lhe tocasse, que aquilo não era brinquedo. Mas eu, num dia em que ele não estava em casa, atrevi-me a passar os dedos, ao de leve, na fina superfície dentada. E pronto, cortei um dedo! Nada de grave, um pequeno corte que nem deixou cicatriz mas do qual nunca mais me esqueci, principalmente porque não admiti a verdade e inventei uma mentira para me defender. Ninguém acreditou na minha desculpa...
Serrotes como o do «Mijinha» já só os encontro em lojas de antiguidades. Agora todos os marceneiros e carpinteiros apenas utilizam ferramentas eléctricas ou de baterias, exceção feita para algum serrote para trabalhos mais especializados. Estão vários em exposição e à venda na loja de ferramentas onde trabalho mas nenhum se parece com o que me cortou os dedos. Contudo, quando olho para eles, recordo sempre o antigo serrote americano do António. E sabem porquê? Porque, muitas vezes, comparo a minha vida à lâmina de um serrote, daqueles com muitos e finos dentes, aos altos e baixos, tipo o alinhamento de cumes e vales num hipotético mapa ou num registo de sismógrafo.
É neste caminhar no fio da lâmina da vida (diria Francisco Cota Fagundes) que balançamos a luta contra as adversidades com as situações de vitórias ou conquistas. Diz também o ditado popular que quanto mais alto se sobe, maior é o trambolhão da caída. Assim, vamos subindo e descendo, avançando, marcando passo ou escorregando conforme os desafios que a vida nos atira à cara. Por vezes o farelo que produzimos neste serrar dos dias é bem fino e mal se vê; mas, noutras alturas, ele cai-nos nos olhos, mistura-se com o sal do suor e afoga-nos a garganta, de tal modo que necessitamos pôr os pés bem fincados no chão, recuperar as forças e o alento necessário a seguirmos viagem nesta oficina da vida.
Serrotes há em que os dentes são todos iguais, da mesma altura e profundidade. Devem ser os espelhos, as lâminas de quem por esta vida passa sem grandes preocupações, numa pasmaceira dolente e simplória. Outros, talvez mais raros, mostram-nos uma assimetria no tamanho dos dentes, nas ranhuras. Começam, na ponta, com entalhes pequenos, iguaizinhos, simétricos; depois, conforme se vai alargando a lâmina do serrote, as fissuras vão crescendo, em tamanho e em intensidade até chegarem ao cabo de madeira, à mão polida e suada, segura com parafusos ou arrebites bem apertados.
...
Sentado no meu quintal, folheio o livro que acabei de receber no correio – Estórias do Tempo, de José Francisco Costa – e, como por coincidência, da roseira atrás de mim, voa uma joaninha que foi pousar mesmo no título da crónica inicial, A Linha da Mente! Fiquei ainda mais em sintonia com o meu amigo escritor.

Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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