O MODELO RACIONALISTA DO JORNAL A BOLA
Por
Manuel Sérgio
“A chegada de A Bola veio alterar o panorama da imprensa
desportiva da época. Os jornais desportivos de maior dimensão eram então
três: Os Sports, a revista Stadium e O
Norte Desportivo. O líder do mercado era a Stadium, vendida a
15 tostões e caracterizada pela beleza das suas fotografias e por crónicas
ligeiras. A primeira edição de A Bola surgiu a 29 de Janeiro
de 1945 e esgotou. Custava apenas 8 tostões e apareceu com 8 páginas. Tinha
como director Álvaro de Andrade, uma vez que nem Cândido de Oliveira, nem
Ribeiro dos Reis, podiam desempenhar o cargo: o primeiro por ter sido preso
político (no Tarrafal) e o segundo por ser oficial do exército” (João Nuno
Coelho e Francisco Pinheiro, A Paixão do Povo – História do Futebol em
Portugal, Edições Afrontamento, Porto, 2002, p. 334).
De grande préstimo me é também o livro do jornalista António Simões, de A
Bola, que dá pelo título Desporto com Política e editado
por A Bola e pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Pelo fulgor das imagens e pela ductilidade do estilo compôs António Simões um
livro esclarecedor, que se lê, com aprazimento. “A Bola chegou pela
primeira vez às bancas, em 29 de Janeiro de 1945. Custava um escudo. Um ano
antes, André Navarro deixara o Governo, a secretaria da Agricultura, para se
tornar presidente da Federação Portuguesa de Futebol. Jogara ténis no Sporting
e fora campeão nacional de pares. Era presidente da Junta Central da Legião,
membro da Comissão Executiva da União Nacional, deputado na Assembleia Nacional,
quase todas as suas intervenções tinham, fosse pelo que fosse, o mesmo pano de
fundo: o ataque ao comunismo, esse terrível perigo para a Nação. Em
11 de Março, realizou-se um Portugal-Espanha (…). Durante o desafio, o
secretariado da Propaganda lançou dos céus do Jamor, de uma avioneta,
panfletos” onde se pedia futebol, mais futebol: “Afinal, o que nós queremos
é futebol!... Sobre isso, A Bola nada disse. De propósito.
Constou que, no dia seguinte, muita gente apanhou o murmúrio no ar: Lá está já
o Cândido a fazer das suas. Incontrolável” (p. 152). Afinal, o Cândido queria
futebol, mas como fenómeno festivo de uma democracia e não como fenómeno
alienante de uma ditadura.
Há quarenta anos menos um, encontrei eu uma frase de Roger Garaudy que deixou
em mim um rastro de encanto: “O sentido da vida não é exterior ao acto de criar
a vida” (Palavra de Homem, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1976, p. 51).
Para este autor, a vida não tem um sentido, porque o sentido somos nós a
criá-lo. Facilmente absolutizamos o relativo e tomamos o efémero por eterno e
definitivo. Mas a criação traz consigo uma questão e não tanto o porquê,
o científico, o causal, mas o para quê, o axiológico, o ético e o
estético. É evidente que tanto Cândido de Oliveira, como o Dr. Vicente de Melo,
eram abertamente democratas, no ambiente repressivo e mefítico da ditadura. O
tenente-coronel Ribeiro dos Reis era-o implicitamente, pois que nunca
hostilizou e sempre acompanhou fraternalmente os seus companheiros de jornada,
na fundação de A Bola. Aliás, o desporto era, então, um fator de
aglutinação ideológica. Vale a pena voltarmos a folhear o livro de António
Simões, aqui referido: Em 1932, “Gustavo Cordeiro Ramos , na qualidade de
ministro da Instrução Pública largou desconcertante esta preocupação: “Há
cada vez mais médicos que se manifestam contra o abuso da mania desportiva,
definindo-a como uma das causas do definhamento do nosso povo, da nossa raça. E
retocou assim a sua ideia: O que pertence ao cérebro sobreleva o que pertence
ao músculo. Nas escolas primárias e secundárias os desportos devem ser
afastados com toda a energia, porque os organismos infantis depauperados não os
suportam, sem graves prejuízos e os atletas marcam a decadência dos grandes
povos. A Grécia e a Roma dos atletas são precisamente a Grécia e a Roma da
decadência” (p. 152).
Já em 1977, no meu livro A Prática e a Educação Física, eu escrevia que lutar
por um desporto novo significava, sem margem para dúvidas, “negação do acto
pedagógico, correspondente a uma organização fixista da sociedade” (p. 21).
Creio que os fundadores de “A Bola” fariam suas estas minhas palavras, já com
trinta e oito anos de vida!
Mas o nascimento de A Bola significa, na sociedade portuguesa,
evolução, na teoria e na prática. Recordo O Fenómeno Humano, de
Teilhard de Chardin: “Cegos esses que não vêem a amplitude de um movimento cujo
espaço, ultrapassando infinitamente as ciências naturais, alcançou e invadiu,
sucessivamente, a Química, a Física, a Sociologia e até as Matemáticas e a
História das Religiões. A evolução apenas uma teoria, um sistema, uma hipótese?
Nada disso e muito mais do que isso. Trata-se de uma condição geral à qual
devem obedecer e satisfazer doravante, para serem verdadeiras, todas as
teorias, todas as hipóteses, todos os sistemas. Uma luz que ilumina todos os
factos, uma curvatura que todos os traços devem acompanhar, eis o que é a
evolução” (Le Phénomène Humain, Oeuvres, Ed. Du Seuil, Paris, p. 255).
Diz ainda Teilhard de Chardin que, até ao surgimento do Homem, a evolução vingou
de forma ascendente, convergente e progressiva. Com o Homem, porém, despontou o
pensamento e a liberdade e, com eles, apareceu a crise, a objetividade
tornou-se problemática, a história deixou de ter um só sentido. Cândido de
Oliveira, Ribeiro dos Reis e Vicente de Melo provaram, com o nascimento
de A Bola, que o futuro da história é um horizonte aberto à
liberdade humana. E, num país onde o Logos era o do ditador,
o sentido de um jornal passou a ser decidido por três homens,
desportistas e democratas. Muitas vezes, de olhos marejados pela emoção, o
Homero Serpa, que sempre timbrou em honrar com inesquecíveis palavras de
gratidão os progenitores do seu jornal, me resumiu o que deles pensava: “Foram
três homens, especialmente o Cândido, que dignificaram e enobreceram o
jornalismo, com a preocupação prioritária de fazerem dele um insubstituível
fator de cultura”. E acrescentava: “E que ajudasse a uma visão nova do
desporto, como um fenómeno cultural e político”. Sem querer ser injusto para
ninguém, julgo que o Vítor Santos, o Carlos Miranda, o Carlos Pinhão, o Alfredo
Farinha e o Homero Serpa souberam corporizar, na marcha do tempo, o espírito,
as ideias, os objetivos primeiros do Cândido e seus pares, os quais, porque
diferentes, criaram o Futuro e, uma vez mais, a Origem foi a des-Ordem, as
minorias, as margens! A Origem não foi a Lei, mas a Exceção!
Este modo de pensar a realidade em permanente estado de crise (Bachelard assim
o pensava também, ao caracterizar a epistemologia não-cartesiana) que a liberdade,
como ética e como política, orienta e providencia - ainda se revela, hoje, no
ímpeto dinâmico e persuasivo dos jornalistas que cumprem, nesta Casa e sem
desfalecimentos, a sua missão. Hoje, no entanto, refiro-me especialmente a
dois, com funções de direção e gestão: o Vítor Serpa e o Fernando Guerra. Com
eles dialogo (com o Vítor, um intelectual sempre de simpatia e fraternidade
familiares por temas culturais, desde há muitos anos já) e deles recebo um
idealismo afirmativo e veemente de confiança na instituição onde trabalham e de
crença no triunfo do espírito que a criou. Quando se descobrirá a escola de
jornalismo de A Bola, fixando-lhe os traços marcantes e as
tendências mais pronunciadas? Não me parece cedo demais para tão salutar e
necessária iniciativa. É que o espírito de Cândido de Oliveira, de Ribeiro dos
Reis, de Vicente de Melo continua, perdura, alarga-se, interpreta-se, todos os
dias... mais e melhor! Sem a metalinguagem despótica do tempo do salazarismo,
porque é a força moral, porque é uma racionalidade crítica, presentes em cada
um dos trabalhadores deste diário, que dão unidade e continuidade a uma forma
invulgar de informar, formando, através do desporto. Homero Serpa
reivindicava sempre uma dimensão ética e cognitiva ao futebol do Cândido.
Aurélio Márcio sustentava que os seus (do Cândido, como é óbvio) triunfos “na
condução das equipas dividiam-se em partes iguais, pela elevada capacidade
técnica e os notáveis dotes de psicologia”. Mas foi o Homero Serpa, em livro
notável, Cândido de Oliveira - Uma biografia, quem melhor retratou
o Cândido de Oliveira, quem com justeza e sobriedade melhor veiculou a sua
mensagem, incluindo o seu fervente apostolado cívico. Por isso, não me furtarei
a rápido bosquejo deste livro, num dos meus próximos artigos.
Manuel Sérgio é Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e
Provedor para a Ética no Desporto
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