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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Do escritor JOEL NETO


Os animais à minha volta

Joel Neto

Talvez a cabra nem tenha sido o primeiro bicho para que ela me chamou a atenção. Desde muito pequena que eu a via acarinhar todos os tipos de animais: gatos, cães, pássaros, até galinhas. Dizia que queria ser veterinária ou pet sitter, bióloga marinha ou dog groomer. “Cabeleireira de cães”, acho que foi a sua expressão (e estava mais certa).

Eu sorria-lhe. Sempre gostei daqueles olhos tristes. E depois, não sei como, alguém deu uma cabra ao pai.

Creio que nem cheguei a ver essa cabra, agora que penso nisso. Andava sempre a viajar, de Lisboa para a ilha e de novo para Lisboa. Mas, por outro lado, vi-a muita vezes nas palavras daquela menina. Encontrávamo-nos e a primeira coisa de que me falava era a cabra: “Sabes que eu tenho uma cabrinha?” Então, eu imaginava uma cabrinha branca e rabina, como a da Heidi – e ficava ali, a ouvir as histórias que a menina me contava sobre ela.

Acontecia alguma coisa onde se podia esconder uma metáfora caprina? “É como a minha cabrinha, no outro dia também começou a…” Eu queria saber o que ela planeava ser quando fosse grande? “Se calhar já não quero ser bióloga marinha, quero ser pet sitter para passear a minha cabrinha.” Não tínhamos mais sobre o que conversar? “Ainda não te contei o que a minha cabrinha fez ontem…”

Tinha sentido de humor. Fazia um riso escarninho, ao imaginar-se a passear uma cabra, um animal tudo menos passeável, e fazia outros gestos cúmplices e inteligentes. Às vezes lembrava-me a minha avó, outras não. A minha avó era má.

Até que um dia cheguei de Lisboa, vim pôr as malas a casa e fui vê-los. Na altura a minha chegada já não era uma novidade: tornara-se uma rotina. A cozinha estava quente e aconchegante, e foi com uma sensação de regresso que girei o trinco à porta. Cumprimentámo-nos todos, na alegria do costume. Finalmente, ao canto da mesa, ela fez o seu ar maroto, um cubinho de carne erguido na ponta do garfo: “Não queres provar a minha cabrinha?”

Toda a gente me diz que esta história não foi bem assim, que fui eu que a inventei. Terá havido uma refeição de cabrito, talvez, mas nunca com aquela cabra. O que acontece é que as crianças chamam “cabrinha” a tudo o que é carneiro, macho ou fêmea, adulto ou cria… E é possível, realmente. À força de tanto contar histórias, um homem deixa de saber o que aconteceu e o que inventou. E, mesmo que ache que de facto aconteceu, ainda há a possibilidade de o seu cérebro o ter enganado.

É o bê-á-bá da neurologia: o nosso cérebro conta-nos histórias para preencher os espaços em branco, ajudando-nos a assimilar o mundo. Eu sempre tive dificuldade em assimilar o mundo. Mas não seria surpreendente se aquela menina tivesse comido a sua cabrinha. Faz parte do ADN das gentes do campo, uma certa promiscuidade entre as funções dos animais domésticos (e as emoções à volta deles). Eu próprio matei galinhas. E todos nós comemos da ‘Rita’, a porca que bebia água pela mangueira.

Como pude eu comer da ‘Rita’, pergunto-me hoje? Como pude ajudar a ir buscá-la ao curral, a erguê-la para cima do banco de abate, a segurá-la com todas as minhas forças de adolescente, sentindo-me a transformar-me num homem enquanto, debaixo de mim, um animal inteligente, talvez até afectuoso, guinchava desesperado? Como pude eu, durante tantos anos, arrancar as penas do pescoço às galinhas e cravar-lhe o gume frio e nem sempre regular de uma faca?

Parece-me tão longe, hoje, esse rapaz que eu era. E, no entanto, estaria ele menos certo, quanto à relação com os animais domésticos, do que este adulto confuso que ainda há dias viu uma vizinha matar um bicho-pau, com o desembaraço e a crueldade que só o hábito permite, e passou dois dias a rever a cena na sua cabeça? Está mais certo do que esse rapaz do campo este homem que nem é bem do campo nem é bem da cidade e que, cuidando dos cães como se fossem pessoas, é capaz de andar a semana toda a contar as horas para ir aos Altares comer um fillet mignon das mesmas vacas sobre que escreve?

Pensei nisso esta tarde, mais uma vez. Vínhamos a descer o Escampadouro, com os cães no porta-bagagens, e à nossa frente uma senhora algo desengonçada caminhava, com uma vara de vime fininha na mão, atrás de uma vaca solitária. Era gorda e parecia estar a reaprender a andar, como se criar aquele animal lhe tivesse devolvido a actividade física exigida pelos médicos, mas agora fosse hora de deixar o bicho no pasto, no meio da manada de algum criador extensivo que dentro de dias tivesse de ir entregar novo lote ao matadouro.

Que pensaria aquela senhora, ao encaminhar a sua vaca para a morte – a vaca que lhe devolvera a vida? E o que terá pensado a minha mãe, quando andou a criar aquela outra bezerra nos Regatos, indo para lá e para cá no Fiat Uno, duas vezes ao dia, nesses anos de solidão em que, seguidos, saímos ambos de casa, primeiro eu e depois a minha irmã? Que dor a povoaria quando, ao telefone para Lisboa, me comunicou: “Morreu a minha vaquinha”? E como pudemos nós todos continuar, apesar disso, a comer carne de vaca?

O facto é que pudemos, e esse é o mistério. Eu pude, apesar de tudo isso sobre que pensei e li. Portanto, não vai ser a filosofia a resolver a minha confusão, e espero que não seja o moralismo também. Mas pergunto-me se não será a sensibilidade. Talvez um dia destes eu saia de casa, rumo aos Altares, e, ao debruçar-me sobre aquele fillet mignon, simplesmente já não consiga comê-lo. Também isso ficarei a dever aos dois cães que se deitam debaixo desta mesa no preciso momento em que escrevo este texto. E o mais provável é que lhes perdoe.

Foto: © António Araújo
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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