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485º Aniversário da Cidade de Angra do Heroísmo

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018




BICHO DO BURACO (Em jeito de auto-retrato, crónica SÓ para quem não me conhece)
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Era certo e sabido: quando descobria que se aproximava uma visita a nossa casa, eu arranjava maneira de desaparecer.
Facilmen sabem como eram as regras de cortesia dessa altura, as senhoras visitavam-se regularmente, iam “pagar visitas” umas às outras. Os motivos eram variados. Poderiam ser primas vindas da Graciosa para consulta médica na Terceira ou parentes de passagem, em viagem de saudade – para pagar promessas – vindos da América, do Canadá ou do Brasil. Ou eram simplesmente as companheiras do Grupo Coral ou do grupo de senhoras que enfeitava o altar da nossa igreja que vinham passar umas horas de conversa onde se trocavam
receitas de pudins ou se ocupava o tempo a enriçar linhas e novelos de lãs, para além de se porem a par das mexeriquices da época.
A minha sorte é que a nossa casa era bem jeitosa para as minhas escapadelas. Elas, as visitas, subiam pela escada principal e eu escapava-me pelas lojas de arrumação do rés-do-chão. Deixava-me ficar por ali, a brincar, a ler ou a fazer que estudava. Quando ouvia ruído a sinalizar o fim da visita, eu fazia o percurso em sentido contrário, feliz e contente porque tinha escapado a meia dúzia de beijos lambuzados e não tinha que responder às perguntas do costume: “Estás a gostar da escola? Gostas da tua professora?”
O pior era submeter-me ao tribunal materno. Que era uma falta de educação, não tinha sido assim que me tinham ensinado e que as pessoas não dão dentadas, eu é que era um bicho-do-buraco! E pronto, encolhia as orelhas e sujeitava-me ao castigo: “Hoje não vais brincar para a rua com os teus amigos nem jogar futebol para o Seminário!”
Esta fama de ser bicho-do-buraco acompanhou-me durante muitos anos. Ser desta maneira também não me trouxe nenhuma vantagem nas minhas relações com o sexo feminino, tive uma ou duas paixões assolapadas que não passaram disso mesmo só porque eu não tinha coragem de me aproximar das ninfas que me povoavam os pensamentos para lhes declarar a minha paixão e acabava a vê-las a namorar com outros. Bem, talvez houve um período, aí para o fim da juventude, em que algumas atitudes meio desavergonhadas e descabidas me poderiam ter merecido uns bons tabefes no nariz. Tive sorte, escapei ileso e agora sinto que fiz algumas asneiras. Aqui me penitencio a quem, por ventura, ofendi.0

Os tempos de tropa não me desemperraram nada. Talvez se tivesse ido para África a coisa teria piado mais fino e me tivesse tornado mais comunicativo e sociável. Ou teria sido ainda pior, não sei. Não quero dizer com esta cantilena que eu seja (ou fui) um tipo antipático, desagradável de conviver ou que nem amigos tivesse. Eu tinha-os aos montes e só não mantenho mais contactos com eles porque este desterro migratório me fez cortar as linhas de comunicação com muitos deles.
Depois, a coisa foi passando, com o crescer da família e o envolvimento com os colegas de trabalho passei a ser mais social, menos introvertido. Mas continuo a não ser pessoa de andar em festas, de pertencer a clubes ou de me envolver em associações seja lá do que for. Não me deixo enervar facilmente, mesmo em situações de algum perigo não me sobe o sangue às orelhas. Sou o que se poderá descrever por uma pessoa pacata e taciturno mas longe de ser triste ou melancólico. Se estou presente numa roda de amigos, mantenho uma atitude contemplativa, vou observando e assimilando os enredos da discussão e procuro dar a minha opinião só quando sei que não vou meter os pés pelas mãos. Posso ser bicho-do-buraco mas por tolo não quero passar, portanto melhor falar pouco para acertar mais. O meu avô “Rato”, da Graciosa, de quem eu talvez herdei este feitio, costumava dizer que “Homem caladinho só pode ser espertinho”. Boca santa!
Agora, nesta caminhada descendente para os meus últimos dias, continuo a ser razoavelmente como sempre fui. Na loja de ferragens onde trabalho tenho que ter uma atitude cortês para com os clientes, dirigir-me as eles, oferecer os meus préstimos, ajudar e prestar esclarecimentos, dentro dos meus (limitados) conhecimentos. Já fiz algumas amizades, gente que lá vai e até me procura para dois dedos de conversa, entre a compra de uma caixa de pregos ou meia dúzia de parafusos. Se calhar foi preciso chegar a velho para resolver ser mais aberto e decidir sair do buraco onde tenho vivido grande parte da minha vida.
Engraçado que mesmo ontem, enquanto via um vídeo com a minha neta, ela ia cantarolando a acompanhar os “macaquinhos” do Disney. De repente, virou-se para mim e disse: “Avô João, sing with me!”. Fiquei atrapalhado. Nunca tive jeito para cantigas, não tenho o mínimo de ouvido musical e a minha voz soa pior do que um burro a zurrar.
Mas, quem sabe, vou começar a treinar com a Olívia, ainda pode ser que acabe por ser selecionado para o “America Got Talent”, venha a desenvolver uma carreira artística e me torne um cantor de nomeada. Não seria nada de espantar, na América tudo é possível, já vamos no segundo actor de TV a ser eleito presidente!
Mais certo é ela, a minha neta, quando me ouvir cantar pela primeira vez, aconselhar-me a seguir o ditado do trisavô dela, o perspicaz “Rato” da Graciosa.
E agora, o melhor é acabar com esta conversa, para não dizer mais alguma asneira.
(Ilustração da curta-metragem “O Bicho do Buraco” feita pelos alunos da Escola Benônico F. Gouveia, Brasil)
Lincoln, Ca. Fev. 3, 2017

João Bendito te as via ao longe. Bastava debruçar-me a uma das janelas e vi-as a subir (ou a descer) a ladeira da Miragaia. A culpa era da minha Mãe, que tinha muitas amigas. E vocês sabem como eram as regras de cortesia dessa altura, as senhoras visitavam-se regularmente, iam “pagar visitas” umas às outras. Os motivos eram variados. Poderiam ser primas vindas da Graciosa para consulta médica na Terceira ou parentes de passagem, em viagem de saudade – para pagar promessas – vindos da América, do Canadá ou do Brasil. Ou eram simplesmente as companheiras do Grupo Coral ou do grupo de senhoras que enfeitava o altar da nossa igreja que vinham passar umas horas de conversa onde se trocavam receitas de pudins ou se ocupava o tempo a enriçar linhas e novelos de lãs, para além de se porem a par das mexeriquices da época.
A minha sorte é que a nossa casa era bem jeitosa para as minhas escapadelas. Elas, as visitas, subiam pela escada principal e eu escapava-me pelas lojas de arrumação do rés-do-chão. Deixava-me ficar por ali, a brincar, a ler ou a fazer que estudava. Quando ouvia ruído a sinalizar o fim da visita, eu fazia o percurso em sentido contrário, feliz e contente porque tinha escapado a meia dúzia de beijos lambuzados e não tinha que responder às perguntas do costume: “Estás a gostar da escola? Gostas da tua professora?”
O pior era submeter-me ao tribunal materno. Que era uma falta de educação, não tinha sido assim que me tinham ensinado e que as pessoas não dão dentadas, eu é que era um bicho-do-buraco! E pronto, encolhia as orelhas e sujeitava-me ao castigo: “Hoje não vais brincar para a rua com os teus amigos nem jogar futebol para o Seminário!”
Esta fama de ser bicho-do-buraco acompanhou-me durante muitos anos. Ser desta maneira também não me trouxe nenhuma vantagem nas minhas relações com o sexo feminino, tive uma ou duas paixões assolapadas que não passaram disso mesmo só porque eu não tinha coragem de me aproximar das ninfas que me povoavam os pensamentos para lhes declarar a minha paixão e acabava a vê-las a namorar com outros. Bem, talvez houve um período, aí para o fim da juventude, em que algumas atitudes meio desavergonhadas e descabidas me poderiam ter merecido uns bons tabefes no nariz. Tive sorte, escapei ileso e agora sinto que fiz algumas asneiras. Aqui me penitencio a quem, por ventura, ofendi.0

Os tempos de tropa não me desemperraram nada. Talvez se tivesse ido para África a coisa teria piado mais fino e me tivesse tornado mais comunicativo e sociável. Ou teria sido ainda pior, não sei. Não quero dizer com esta cantilena que eu seja (ou fui) um tipo antipático, desagradável de conviver ou que nem amigos tivesse. Eu tinha-os aos montes e só não mantenho mais contactos com eles porque este desterro migratório me fez cortar as linhas de comunicação com muitos deles.
Depois, a coisa foi passando, com o crescer da família e o envolvimento com os colegas de trabalho passei a ser mais social, menos introvertido. Mas continuo a não ser pessoa de andar em festas, de pertencer a clubes ou de me envolver em associações seja lá do que for. Não me deixo enervar facilmente, mesmo em situações de algum perigo não me sobe o sangue às orelhas. Sou o que se poderá descrever por uma pessoa pacata e taciturno mas longe de ser triste ou melancólico. Se estou presente numa roda de amigos, mantenho uma atitude contemplativa, vou observando e assimilando os enredos da discussão e procuro dar a minha opinião só quando sei que não vou meter os pés pelas mãos. Posso ser bicho-do-buraco mas por tolo não quero passar, portanto melhor falar pouco para acertar mais. O meu avô “Rato”, da Graciosa, de quem eu talvez herdei este feitio, costumava dizer que “Homem caladinho só pode ser espertinho”. Boca santa!
Agora, nesta caminhada descendente para os meus últimos dias, continuo a ser razoavelmente como sempre fui. Na loja de ferragens onde trabalho tenho que ter uma atitude cortês para com os clientes, dirigir-me as eles, oferecer os meus préstimos, ajudar e prestar esclarecimentos, dentro dos meus (limitados) conhecimentos. Já fiz algumas amizades, gente que lá vai e até me procura para dois dedos de conversa, entre a compra de uma caixa de pregos ou meia dúzia de parafusos. Se calhar foi preciso chegar a velho para resolver ser mais aberto e decidir sair do buraco onde tenho vivido grande parte da minha vida.
Engraçado que mesmo ontem, enquanto via um vídeo com a minha neta, ela ia cantarolando a acompanhar os “macaquinhos” do Disney. De repente, virou-se para mim e disse: “Avô João, sing with me!”. Fiquei atrapalhado. Nunca tive jeito para cantigas, não tenho o mínimo de ouvido musical e a minha voz soa pior do que um burro a zurrar.
Mas, quem sabe, vou começar a treinar com a Olívia, ainda pode ser que acabe por ser selecionado para o “America Got Talent”, venha a desenvolver uma carreira artística e me torne um cantor de nomeada. Não seria nada de espantar, na América tudo é possível, já vamos no segundo actor de TV a ser eleito presidente!
Mais certo é ela, a minha neta, quando me ouvir cantar pela primeira vez, aconselhar-me a seguir o ditado do trisavô dela, o perspicaz “Rato” da Graciosa.
E agora, o melhor é acabar com esta conversa, para não dizer mais alguma asneira.
(Ilustração da curta-metragem “O Bicho do Buraco” feita pelos alunos da Escola Benônico F. Gouveia, Brasil)
Lincoln, Ca. Fev. 3, 2017

João Bendito
Carlos Alberto Alves

Sobre o autor

Carlos Alberto Alves - Jornalista há mais de 50 anos com crónicas e reportagens na comunicação social desportiva e generalista. Redator do Portal Splish Splash e do site oficial da Confraria Cultural Brasil-Portugal. Colabora semanalmente no programa Rádio Face, da Rádio Ratel, dos Açores. Leia Mais sobre o autor...

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